A Nação é o que resta quando a sociedade fracassa

Sete de setembro de 2022. Não é de espantar que a maior parte dos cidadãos tenha deparado, a pretexto ou não do bicentenário da independência, com uma diversidade de bandeiras do Brasil e de símbolos que exaltam um determinado sentimento de nacionalidade. Podemos ir mais longe: as fronteiras da Ucrânia, como a de outras nacionalidades (ou que assim se querem), também são ameaçadas por sentimentos nacionais que não aqueles de que compartilham uma parte considerável de sua população. A nação parece ser algo em constante disputa, numa longa luta simbólica, política, econômica ou cultural. Em torno dela se sente a segurança de um destino político em comum para todos que dela fazem parte, mas também ela por si só não garante os pressupostos básicos que tornam os cidadãos sujeitos de direito dentro de uma sociedade. Na surdina dos bares se confessa, ora em tom de lamento, ora de súplica em “recuperar nossa bandeira”. Mas essa luta é antiga. Como entender essa equação?

Escolho analisar esse ambíguo quadro a partir de uma leitura minha do livro Nações e Nacionalismos desde 1780, do historiador britânico falecido em outubro de 2012, Eric J. Hobsbawm; acrescento, a pretexto do tema, outras referências ao longo do texto. Hobsbawm distingue a consciência nacional como algo diferente da consciência cidadã: enquanto aquela se dedica a assegurar o sentimento nacional em torno da língua, da literatura, dos símbolos nacionais, esta perfaz a necessidade dos sujeitos de direitos: saúde, educação, segurança, justiça ou igualdade. Em seus termos, ser cidadão ou cidadã é participar dos princípios básicos que definem o que significa cidadania e todos os direitos civis que advieram junto da expansão urbana da modernidade. Muito embora, como compreende Hobsbawm ao longo de três séculos, os sentimentos nacionais se utilizassem da consciência cidadã em benefício próprio isto não significa que eles estejam necessariamente juntos. Muito menos para todas as classes.

Nessa reflexão sobre o bicentenário da independência recupero um debate qualificado pelo historiador marxista sobre a distinção entre classe e nação. Os sentimentos nacionais, afinal de contas, são ambíguos porque são traduzidos a pretexto das classes que fazem a sociedade: eles são uns para uns e outros para outros. A consciência cidadã, por extensão, não necessariamente anda em conjunto com a consciência nacional, porque ela é demandada de diferentes formas por diferentes classes. E diante de um nacionalismo acerbo, a importância de um sistema de saúde público ou de um ensino público e de qualidade para algumas classes torna-se um preciosismo fútil diante da suposta luta contra uma ameaça comunista. O sentimento de “nós” e “eles”, afinal, é um pressuposto sociológico e político importante para pensar como uma identidade nacional se forma a partir dos critérios que aproximam um povo ou uma nação na distinção de uma outra. Não é uma mera bravata. Diria mais: ainda que as bases dessa diferenciação atinjam os membros de um mesmo estado-nação, o “nós” e “eles” explica o porquê de uma nação estar cindida ao meio. Ou como gostamos de falar hoje: polarizada.

Max Weber, o sociólogo alemão, diria que para um Estado-Nação existir é preciso que haja a tradução dos sentimentos nacionais em sentimentos pátrios; porém, quem são estes que os traduzem hoje? Estado-Nação seria a conformação institucional que protegeria a legitimidade de um sentimento nacional compartilhado e imaginado: as forças armadas, a diplomacia, os tribunais que asseguram o respeito e a convivência de seus cidadãos em um território politicamente definido como um país, tal qual o Brasil. A tradução deste sentimento legítimo nem sempre soa fácil: seria uma tarefa de intelectuais, nossos atuais formadores de opinião. Em tempos de TikTok, a tradução pode parecer mais fácil para uns e difíceis para outros. Se os símbolos pátrios forem a bandeira e não a luta contra a fome; a seleção brasileira e não a compra de vacinas para a população; a lacração e não a recuperação das relações diplomáticas e do comércio exterior cindidas nos últimos anos, o que resta quando uma suposta nação sobrevive diante de uma sociedade e o seu propenso fracasso?

Retornando ao nosso historiador britânico, haveria três critérios práticos no século 19 para um povo ser considerado uma nação: (1) a associação com um passado glorioso de um Estado recente; (2) uma elite cultural longamente estabelecida e com influência literária e administrativa e (3) capacidade de conquista e de tornar sua população consciente de sua existência coletiva enquanto povo. Modernamente, o Brasil atravessou o século XX cerceado por movimentos nacionais que pleiteavam o reconhecimento do destino político em comum de um povo em alguns de seus territórios. A reação era tão violenta quanto exemplar. Nas três características citadas por Hobsbawm vemos que a nação é um sentimento em disputa, uma vez que o passado é uma invenção de como cada classe social concebe suas referências pretéritas e traça o seu futuro: pode ser a volta da monarquia, ou de um poderio militar irrestrito, ou pode ser ainda o retorno a um passado recente de conquista dos direitos dos cidadãos; por seu turno, a elite estabelecida pode não ser um conjunto de acadêmicos, letrados ou juristas, mas teólogos, influenciadores digitais e supostos movimentos intelectuais de apego a símbolos pretéritos; já a capacidade de conquista, por fim, é interpretada como a legitimação da violência política contra supostos inimigos criados por uma onda de interpretação arbitrária dos símbolos nacionais.

A nação é o que resta quando a sociedade fracassa. Mas resta porque parece ser o sentimento de algumas classes que se mantém protegido quando as demais passam fome e é esgarçada toda a noção de direito cidadão em virtude de um sentimento nacional criado. Uma tradição por vezes inventada. Posto que a noção de nacional é vista pelo ponto de vista das classes que fazem uma sociedade e, portanto, não necessariamente a consciência nacional se encontra próxima de uma consciência cidadã, embora ambas não sejam mutuamente excludentes. Isto, por exemplo, demonstra Hobsbawm quando reflete sobre como a esquerda reivindicou a luta pelos símbolos nacionais sequestrados pelo fascismo após a Segunda Guerra Mundial.

De há muito o finado economista paraibano Celso Furtado desdobrou-se a compreender o Brasil em sua dimensão histórica, econômica, social, política e cultural. Perguntava Furtado: dado o Brasil ser tão conhecido como uma “nação do futuro”, por que insistíamos em sonhos tão pretéritos? A reorganização do tecido social, econômico, cultural e educacional seria mais do que necessária para essa concretização. E se o Brasil é uma “construção interrompida”, um longo amanhecer do qual não víamos e ao mesmo tempo sentíamos o nascer do sol, esta também se dá porque a necessidade de uma nação por integração, de regiões, oportunidades ou classes seria um horizonte reconfortante para uma nação “interrompida” ser uma nação de fato. 

Mas estas são apenas as derrotas em que detestaríamos estar ao lado dos que venceram.