A sustentação do tecido social hegemônico e sua relação com os conceitos de matrimônio x patrimônio
Muitos que me conhecem sabem de algumas histórias pelas quais passei enquanto mulher, desde assédio moral, sexual a todos os mais diversos tipos de violência de gênero. Mas minha força é inspirada em minha ancestralidade, a ancestralidade de quem pavimentou os caminhos que piso com meus pés descalços e calejados pela opressão patriarcal em diversos espaços, desde o familiar até o institucional.
O enfrentamento a todas as situações de violência só começaram a ser freados quando passei a ter consciência de quem eu sou, do espaço que ocupo, da minha ancestralidade. Essa consciência veio através dos estudos, das leituras e dos diálogos que me proporcionaram consciência de classe, raça e gênero. E garanto, não foi fácil sair da caverna que me aprisionava.
A gente cresce sendo moldadas enquanto pessoas dentro de um sistema patriarcal e misógino que nos impõe conceitos que vão construindo nossa identidade através de imposições que violentam nossa natureza humana. Por isso, é especialmente importante que tenhamos consciência de quem somos, de quem veio antes de nós e passou pelas agruras ao enfrentar o patriarcado, sabermos para onde queremos seguir e que mundo queremos deixar para a nossa ancestralidade futura. Nesse sentido, é necessário examinarmos conceitos que precisam ser problematizados para que socialmente construamos um novo paradigma, cujo tecido social seja costurado equitativamente com dignidade e liberdade para sermos quem somos e quem queremos Ser.
A violência contra a mulher tem vários aspectos e estes estão conectados diretamente a questões conceituais. Palavras do dia-a-dia que são proferidas naturalmente e que através delas, naturalizam situações de subalternização. Por exemplo: matriarcado x patriarcado; matrimônio x patrimônio. Você já parou pra pensar nesses conceitos e como eles trazem consigo a materialização de ações no dia-a-dia?
Para começar a compreender essa perspectiva, vou partir do “patriarcado versus matriarcado” para depois analisar “patrimônio versus matrimônio”.
O patriarcado é um pacto de manutenção do status quo masculino, “se trata de um conjunto de práticas instituído há milênios para manter as mulheres sob o domínio masculino” (Ceribelli, 2022, p. X), estas práticas são difundidas social e culturalmente, inclusive entre mulheres, para que elas não se vejam como pessoas fortes e independentes. O matriarcado, por sua vez, segundo Goettner-Abendroth (2004), pode ser resumido como sociedades de parentesco, igualitárias, com um padrão social político que não permite acúmulo de poder, não havendo dominados ou dominantes, opressores nem oprimidos. Percebe a diferença?
Com relação ao “patrimônio versus matrimônio”, temos que a origem do primeiro termo vem do latim “patrimonium”, e se referia, entre os antigos romanos, àquilo que pertencia ao pai de família, sendo privado, individual e existente apenas entre a nobreza. Já a palavra matrimônio, também oriunda do latim “matrimonium”, é homóloga a patrimônio.
A civilização ocidental, a partir dessas raízes foi cunhando novos sentidos. Segundo a professora e pesquisadora Ria Lemaire-Mertens (2018, p. 26), na idade média havia “ainda, de um lado, um patrimônio no sentido de bens materiais e culturais da linhagem masculina, transmitidos de pai para filho; e, de outro lado, um matrimônio no sentido originário do termo: conjunto dos bens materiais e culturais pertencentes à linhagem feminina”. A autora (ibid) também explica que, no idioma francês,
ainda no século XV, a palavra matrimônio mantém seu sentido original de bens maternos ao lado do significado mais recente, o de casamento, que se propaga progressivamente no decorrer da segunda era medieval como acompanhante da instalação do casamento monogâmico (DUBY, 1981) para se generalizar nos tempos modernos, fazendo esquecer aos povos o sentido original da palavra.
Os fatos postos corroboram para a conclusão de que, com o passar do tempo, o espaço feminino foi sendo cada vez mais restringido a partir dos conceitos imputados pelo patriarcado hegemônico ocidental e eurocentrado, com isso, o “silenciamento do matrimônio e a monopolização progressiva do patrimônio” (LEMAIRE, 2018, p. 27) vão pavimentando um caminho cada vez mais solidificado historicamente, relegando as mulheres um papel de coadjuvante, enquanto os homens, são os protagonistas das nossas histórias. Apesar de distorcida, essa é a história que nos é contada pelos homens!
As mulheres não são coadjuvantes, são protagonistas e precisam contar a história real, a de quem sem o ventre que pari, sem o afeto que une, sem a ternura que burila a existência feminina, sem a força que suporta a dor de parir e de sangrar até se exaurir, não há a existência masculina. Somos natural e essencialmente matriarcas, descendentes de outras matriarcas que nos alimentaram com o mesmo leite da vida e da existência.
Embora os conceitos estejam postos e venham se ressignificando ao longo dos séculos, eles são insuficientes e distorcem a realidade do que é ser mulher, pois a mulher é a matrix, o útero do mundo e o que somos essencialmente, não pode ser moldado por conceitos. Só mulheres empoderadas e conscientes do seu papel social e político podem provocar essa mudança, por isso a importância de sabermos quem somos, quem veio antes de nós e, sobretudo, sabermos para onde queremos seguir e que mundo queremos deixar para o nosso futuro ancestral.
Finalizo essa reflexão explicando o motivo de tê-la escrito. Apesar de não ser da área das letras, da linguística ou outra similar, esses termos servem para nos mostrar o quanto as palavras e seus conceitos são socialmente estruturados com a função de manter um status quo estabelecido pelo patriarcado. Esses são apenas dois de centenas de milhares de palavras que podem servir como grilhões ao sistema. De tal modo, é importante pensarmos nas palavras e na descolonização da linguagem ao escrevermos ou nos comunicarmos de outros modos. Finalizo com as palavras de Pitty, na música Feminelza, gravada por Elza Soares no álbum “No tempo da Intolerância”:
“Respeite esse corpo que dele sai gente
Que sangra sem morrer
Respeite esse corpo, ele não lhe pertence
Feminino corpo vai prevalecer”
Referências:
CERIBELLE, Marcela. In.: STONE, Merlin. Quando Deus era mulher. São Paulo: Goya, 2022.
GOETTNER-ABENDROTH, Heide. Matriarchal Society: Definition and Theory. Published in The Gift, A Feminist Analysis. Athanor book, Meltemi editore, Roma 2004. Disponível em http://wunrn.com/wp-content/uploads/013106_matriachial_society.pdf. Acesso em 12 Jan. 2021.
LEMAIRE, R. Patrimônio e matrimônio: proposta para uma nova historiografia da cultura ocidental. Dossiê – Educação feminina: história e memória • Educ. rev. 34 (70) • Jul-Aug 2018 • https://doi.org/10.1590/0104-4060.58617
Obrigada Regina pela excelente leitura indicada.
Um forte abraço.
Que texto maravilhoso, que deve ser divulgado entre nossos grupos, para o nosso entendimento ser construído com qualidade, de que “[…] a realidade do que é ser mulher, pois a mulher é a matrix, o útero do mundo”. Parabéns amiga Regina!
– VOCÊ ESCREVE MUITO BEM MESMO
E DE UMA FORMA LÚCIDA, TRANSLÚCIDA E
CONSCIENTIZADA.
SEMPR