Desinformação e fake news na pandemia no Brasil
No dia 26 de outubro de 2021 foi votado no Senado o Relatório Final de CPI da Pandemia, depois de quatro meses de audiências e investigações. São 1.288 páginas e entre os 15 itens que compõem o relatório (o 16º são as conclusões), está o item nove “Desinformação na pandemia (fake news) com nove subitens (são 220 páginas, da pg. 663 a p. 883).
Antes de fazer referências literais a algumas partes do relatório talvez seja útil distinguir desinformação de fake news. Por desinformação o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, entende que se trata de “ação ou efeito de desinformar com informação falsa, dada no propósito de confundir ou induzir a erro”, e por fake news concordarmos com a definição do jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, ao afirmar que é mais do que notícias falsas: trata-se de notícias fraudulentas “aquelas notícias publicadas com intenção de dolo, de modo baixo e trapaceiro” (citado no artigo “Fake news”: termo é um novo jeito de chamar velhos problemas” de Caio Túlio Costa publicado no jornal da USP no dia 10/07/2018).
O fato é que ambas tiveram um papel importante em processos eleitorais mais recentes, com o uso intenso das redes sociais, como ocorreu, entre outros países, nos Estados Unidos em 2016 e o Brasil em 2018, elegendo, respectivamente, Donald Trump e Jair Bolsonaro, salientando que esse uso antecedeu e continuou depois que foram eleitos e o que a CPI da pandemia constatou foi exatamente isso: a continuidade das ações desse ecossistema informacional que tinha como objetivo a difusão massiva de mensagens e noticias falsas.
Como consta no relatório, a comunicação é essencial para informar, mas ocorre que esse pressuposto foi colocado em xeque com “o governo e pessoas que divulgaram notícias intencionalmente enganosas”, como a CPI constatou, com “pessoas mal-intencionadas, em favor de interesses próprios e escusos” e que, como consequência “provoca grande confusão e induz a população a adotar comportamentos que dificultam ou mesmo impedem o correto combate à pandemia de covid-19.”
Constatou-se que havia (e continua havendo) um grande número de publicações (listadas no relatório, com links para as matérias enganosas) que foram amplamente difundidas que conflitavam (e conflitam) com a verdade, e são disseminadas pelas redes sociais, com “conteúdos claramente contrários as evidências técnicas e científicas, gerando desinformação e confusão na população por meio de um processo que se convencionou denominar fake news” e que “tais ações tiveram como consequências diretas o agravamento dos riscos de saúde para as pessoas, o rápido incremento da contaminação pelo coronavírus, o aumento do índice de ocupação dos leitos hospitalares e, finalmente, nefastas perdas para o País”.
Segundo o relatório, não apenas órgãos públicos de comunicação se omitiram em sua missão de combater boatos e a desinformação, mas participaram ativamente do processo de criação e difusão. Além disso, ainda mais grave, ficou comprovado “que a própria cúpula do governo se envolveu em ações para fomentar a disseminação de fake news”.
A investigação da CPI evidenciou a omissão do governo federal na conscientização da população acerca da pandemia; mostrou a participação do presidente da República, seus filhos e o primeiro escalão do governo “na criação e disseminação das informações falsas; com o uso da estrutura governamental e não menos relevante “o suporte a comunicadores que propagam notícias e informações falsas sobre covid-19”.
O relatório também revela como se estruturou a produção e disseminação das fake news que “não são apenas informações sem fundamentação que ocorrem de forma esporádica ou isolada, mas que compõem um arranjo complexo e sistemático que tem o objetivo de gerar engajamento em sua audiência para extrair proveito econômico ou político, utilizando, para isso, a produção de conteúdo textual ou audiovisual com caráter supostamente noticioso, divulgado tanto por meio das mídias tradicionais (jornais, revistas, televisão ou rádio), quanto pelas redes sociais na internet”.
Como salienta o relatório, eles não fazem afirmativas aleatórias, e o que dizem foram resultados de investigações, documentos, postagens (muitas das quais apagadas posteriormente), selecionando e analisando dados, mostrando as ligações entre os seus participantes, destacando o papel e a composição de cada núcleo no funcionamento do que qualificou como uma organização e não apenas iniciativas individuais.
Mas, detalhe importante, essa organização não agiu apenas para produzir e difundir fake news contra as medidas sanitárias adotadas por governadores e prefeitos no curso da pandemia de covid-19, também “agiu e vem agindo em direção a outros alvos”, citando as agressões sistemáticas a membros do Supremo Tribunal Federal (STF) e ofensas reiteradas à lisura do processo eleitoral conduzido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), além de questionar as urnas eletrônicas (sem apresentar qualquer prova nesse sentido). Estes atos, como diz o relatório, “têm o nítido intuito de gerar descrédito nas instituições do país e causar sua desestabilização política”.
Segundo as investigações da CPI essa organização era formada por cinco núcleos articulados entre si: o de comando, o formulador, o político, o de produção e disseminação das fake news e de financiamento, descrevendo como se estruturava e funcionava, mostrando que havia uma hierarquia. O mais importante era o núcleo de comando, “a cabeça da organização”, formado pelo Presidente da República e seus filhos que ocupam cargos políticos, a saber: o Senador Flávio Bolsonaro, o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro e o Vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, todos com funções importantes, cabendo a este “dirigir a organização e orientar estrategicamente ações realizadas nos níveis inferiores da hierarquia, dando-lhes diretrizes informando-lhes prioridades de ação”.
O núcleo formulador atuou especialmente dentro do Palácio do Planalto, e ficou conhecido como Gabinete do Ódio, por ser apontado como o formulador de conteúdos e distribuição aos
disseminadores, formulando estratégias para a disseminação de desinformação e contando para isso com uma rede estruturada de sites e veículos de comunicação “ajudando a impulsionar notícias com dados falsos, estudos desmentidos, teses conspiratórias” e todos recorrendo a uma estratégia de usar a plataforma de monetização Google AdSense para converter em dinheiro os cliques em seus sites.
Outro núcleo importante é o que ofereceu suporte político às decisões da organização, formado essencialmente por parlamentares, políticos, autoridades públicas e religiosas.
O que eles têm em comum, além da produção de fake news, é a de “ incentivaram as pessoas ao descumprimento das normas sanitárias para conter a pandemia” e assim “adotaram condutas de incitação ao crime”.
O relatório apresenta várias postagens de seus integrantes, afirmando que “estão devidamente demonstrados” e que não se limitavam à expressão de suas opiniões pessoais, mas de disseminação de mentiras e manipulação de dados: “Sendo pessoas públicas, suas falas exercem enorme influência sobre a população brasileira. Em função do cargo que ocupam, suas falas e revestem da presunção de autoridade”.
Quanto ao núcleo de produção e disseminação de fake news, foi dividido em três grupos: os influenciadores sociais, os veículos de mídia organizados e os perfis anônimos. Todos têm em comum um alto grau de afinidade ideológica com o Presidente da República, mas também para “auferir ganhos financeiros, de forma deliberada, pelo alarmismo causado em sua audiência”.
O relatório identifica nesse grupo (ressaltando que o número de sites propagadores de fake news é bem mais extenso do que os listados) os sites Crítica Nacional, Estudos Nacionais, Instituto Força Brasil, Jornal da Cidade Online, Senso Incomum, Terça Livre, Brasil Paralelo, Conexão Política, Jornal da Cidade Online, Renova Mídia, República de Curitiba, Folha Política, Brasil Sem Medo, Verdade dos Fatos e Awake Giants Brasil.
Há, portanto, mais do que indivíduos isolados defensores do presidente e da difusão intencional de mentiras, uma organização que funcionava como uma rede “com tarefas distribuídas por aderência entre idealizadores, produtores, difusores e financiadores, voltada à disseminação de fake news (consideradas, entre elas, as notícias propositalmente apresentadas de forma parcial) com o intuito de influenciar a opinião da população quanto a determinado tema, incidindo, de forma geral, na prática de tipos penais previstos na legislação, com o objetivo de, ao fim, obter vantagens político-partidárias e/ou econômico-financeiras”, ou seja, tratava-se também de monetarização que são calculadas de forma proporcional ao número de visualizações do conteúdo, e nesse sentido, é possível compreender as “estratégias de seus titulares para produzir conteúdo sensacionalista, buscando engajar sua audiência para retornar a seu canal, página ou perfil e incentivar compartilhamentos para angariar novos seguidores”.
Quanto à desinformação observou-se que os mais frequentes foram à propagação de notícias infundadas sobre a origem do vírus, com ataques (despropositados) à China, com conteúdo nitidamente xenófobo; críticas ao isolamento social; a busca de isenção de responsabilidade do governo federal “com base no falso discurso de que o Supremo Tribunal Federal havia proibido o governo federal de atuar no combate à pandemia” , além de distorções sobre o número de mortes causadas pela covid-19 e a contestação da eficácia do uso de máscaras no enfrentamento da pandemia.
Um aspecto destacado como grave, além das mentiras e manipulações foram utilizados recursos da administração pública “de forma aberta e despudorada para desinformar a população, em sentido contrário do que se esperaria de um governo minimamente responsável com a saúde de seus cidadãos”. E identifica uma verdadeira campanha de desinformação institucional, que incluiu órgãos públicos como a Secom, o Ministério da Saúde, a TV Brasil e o próprio Palácio do Planalto.
Um dos exemplos citados no relatório é a FUNAG (Fundação Alexandre de Gusmão) dirigida por Roberto Goidanich e do seu chefe, o então Ministro Ernesto Araújo, “utilizando a estrutura pública para propagar teorias e incentivar o descumprimento das normas sanitárias durante a pandemia”.
Havia, portanto, uma organização, com apoio institucional, que elaborava e propagava fake news com o intuito de enganar quanto à segurança das medidas de enfrentamento da pandemia e “agia através de canais, páginas e perfis de conteúdo em redes sociais e plataformas de conteúdos digitais, tais como YouTube, Instagram, Facebook, Twitter e Twitch. TV”.
Em relação à divulgação de mentiras sistemáticas, é importante afirmar que não se tratava do exercício legítimo do direito de expressar opiniões e pensamentos mas “de produzir e difundir publicações com conteúdo falso ou intencionalmente distorcido, notícias falsas e sensacionalistas contra o uso da máscara, o distanciamento social e outras medidas de prevenção à pandemia com viés sensacionalista visando a se espalhar para o maior número possível de pessoas, com o propósito de atacar as medidas de prevenção sanitárias adotadas por autoridades públicas no exercício de sua função, desacreditar dados estatísticos e estudos científicos e gerar confusão e medo nas pessoas, para que elas não compreendam as medidas implementadas ou tenham receio de segui-las se tornando um meio ganhar dinheiro, de maneira fácil e inescrupulosa”.
Nesse sentido, destacam a necessidade de aprofundamento das investigações sobre a conduta de pessoas e sites para apuração de delitos que tenham ultrapassado o direito à liberdade de opinião e a importância de leis para punir a disseminação de fake news, de sanções para quem cria e dissemina notícias falsas, como é feito, por exemplo, no Instagram que “tem sido um dos pontos cruciais e determinantes para a disseminação de fake news”.
Como o relatório destaca “Por toda a rede, é possível encontrar perfis (alguns com milhares de seguidores), que conseguem alcançar um grande número de usuários” e seguem impunes e recorrentes em suas mentiras e manipulações. E também ganhando dinheiro para fazer isso e como se afirma no relatório “incentivando o descumprimento das medidas sanitárias de contenção da pandemia, incidindo diversas vezes na incitação ao crime Intencional, os atos que promovem informações falsas e estimulam a infração de medidas sanitárias preventivas (conduta considerada crime) decretadas durante a pandemia ferem o art. 286 do Código Penal. O resultado dessas ações é colocar em risco a vida de milhares de brasileiros e brasileiras”.
O relatório faz referências ainda aos núcleos de disseminação e o financeiro. No primeiro caso, são citados muitos sites como o Instituto Força Brasil que “durante a pandemia intensificou o apoio com suporte jurídico e financiamento de sites e grupos envolvidos na disseminação de conteúdos voltados para a desinformação”, assim como o site Crítica Nacional, que “fazia apologia ao tratamento precoce, contrário ao uso de máscaras, divulgando conteúdos antivacina e críticas a Organização Mundial da Saúde (OMS)”.
Quanto ao núcleo financeiro destaca a participação do empresário Luciano Hang “um dos principais personagens disseminação de fake news” e também investigado pelo financiamento de sites e pelos impulsionamentos de notícias falsas utilizando bots, e assim foi incluído na lista de disseminadores de fake news (além de ser investigado pelo Supremo Tribunal Federal no inquérito que investiga postagens e financiamentos de atos antidemocráticos).
O documento também faz referência à postura adotada pelo governo federal em relação aos povos indígenas, acusado de prática de crimes contra a humanidade por “restringir vacina prioritária aos indígenas”, ou seja, “agiram para limitar o acesso a esse importante recurso de preservação da vida, sendo possível remeter tal conduta ao crime de extermínio às condutas que expuseram desnecessariamente a condições aptas a causar a destruição dessa parte da população, bem como privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito internacional, por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da coletividade em causa, que configura atos de perseguição” e a inclusão parcial de um estudo sobre o impacto da pandemia na população negra demonstrando como houve, por parte do governo federal uma “naturalização” das desigualdades e do racismo que colocou negras e negros em condição de maior vulnerabilidade.
Divulgado o relatório e encaminhado aos órgãos competentes para os devidos desdobramentos, o que esperar tanto do ponto de vista jurídico, como político? Que impactos terá nas eleições presidenciais do próximo ano? Tanto em relação a um como ao outro, é ainda uma incógnita. Cairá no esquecimento? As denúncias serão simplesmente arquivadas? Os crimes apontados ficarão impunes? E nesse caso dando razão a gargalhada do senador Flavio Bolsonaro ao ser questionado a respeito das denúncias contra seu pai, que como disse Bernardo Mello Franco (artigo publicado no dia 20 de outubro de 2021 no jornal O Globo) o senador “expôs sua fé na impunidade”?
Nesse caso específico fica claro a coerência dessa atitude com os demais integrantes da família que ao longo da pandemia (no dia da gargalhada havia sido registradas 603.902 mortes) porque como afirmou Bernardo Mello Franco “sempre trataram a crise sanitária com deboche, negacionismo e indiferença pelo sofrimento das vítimas”.
No final o relatório faz algumas sugestões em relação à legislação e ao destacar a dimensão perversa das fake news diz esperar que “condutas de criação, disseminação impulsionamentos automatizados de notícias falsas passem a ser tipificados e imponham penas capazes de coibir a prática criminosa de desinformar para obter ganhos financeiros, pessoais ou políticos. Afinal, está mais do que comprovado que fake news matam”.