Feminismo, religião e a política por trás do patriarcado

Ampliar os espaços dialógicos que possibilitam mudanças estruturantes e necessárias na sociedade patriarcal e misógina na qual estamos inseridas, significa dar visibilidade as questões que tratam da vida e da existência das mulheres a partir de suas multiperspectivas existenciais e da violência de gênero que perpassa essa existência há séculos, inclusive nos espaços que, em tese, deveriam ser de acolhimento e afeto, como é o caso específico das igrejas ou outros espaços religiosos.

A tradição do pensamento eurocêntrico, branco e machista, é tão estrutural quanto no caso do racismo. De tal modo, a herança patriarcal e racista é intrinsecamente ligada ao colonialismo eurocentrista, do qual faz parte o cristianismo que desde o período medieval, buscou ocupar espaços e subjugar os povos não-cristãos para convertê-los, cristianizá-los. Quem não concordava com a catequese que tinha a bênção dos grandes impérios e reinados, estava fadado a condenação e morte, principalmente, no período medieval da expansão católica, as mulheres que se atrevessem a mostrar seus conhecimentos, suas sabedorias e seu domínio sobre assuntos que eram permitidos apenas aos homens conhecer.

Nesse período, conhecido como Inquisição ou Santo Ofício, a igreja Católica foi responsável por perseguir, julgar e punir violentamente àqueles e aquelas que eram acusadas de se desviar de suas normas de conduta. E assim surge o termo herege, aplicado a todos e todas que professassem práticas diferentes daquelas reconhecidas como práticas cristãs. As punições eram severas como é o caso da condenação à morte na fogueira, a prisão perpétua e o confisco de bens, o que transformou a Inquisição em uma atividade muito rentável para os cofres das igrejas.

No caso das mulheres, havia as acusadas de adultério, mas a grande maioria era acusada de bruxaria, pactos satânicos e uso de poderes sobrenaturais, além das acusações de práticas sexuais com demônios. A caça às bruxas, em grande parte, ocorreu no início do período moderno, entre os séculos XIV e XVIII. Segundo alguns historiadores, foram executadas entre 40 mil e 50 mil pessoas acusadas de bruxaria.

Um fato interessante é que nesse período existiram os famosos alquimistas, mas geralmente eram homens ridos e poderosos ou próximos aos que detinham o poder. A prática não era condenada, eles alegavam ser manipuladores da natureza. E embora a prática de não fosse tão diferente da praticada por algumas mulheres que faziam “poções” de cura como chás de ervas específicas ou atividades similares, eles eram alquimistas; elas, bruxas! Eles eram estudiosos; elas, bruxas! Mas esse é um outro assunto que merece um artigo inteiro porque dá muito “pano pra manga”

Diante de todos os fatos históricos no que tange a existência da mulher frente ao universo patriarcal, a lição que se tira é que as mulheres, ao se posicionarem e ocuparem espaços de poder desafiam o patriarcado e mostram o ranço de uma sociedade que não se descolonizou, por isso, as muitas formas de violência contra as mulheres e os feminicídios são uma constante até os dias atuais. Aliás, segundo o Laboratório de Estudos de Feminicídios (LESFEM), a partir dos dados coletados pelo Monitor de Feminicídios no Brasil (MFB), entre janeiro e julho de 2023, ocorreram cerca de 3,81 feminicídios por dia no Brasil em 667 municípios. Mato Grosso do Sul, Roraima, Acre, Espírito Santo e Distrito Federal são as cinco unidades da federação com as maiores taxas de crimes contra a vida e a existência das mulheres. O domingo foi o dia  com mais casos de feminicídios. Mulheres de todas as idades são as vítimas da violência feminicida, mas as mulheres mais atingidas estão as que têm entre 25 e 36 anos, seguido do grupo entre 35 e 37 anos. Cerca de 47% eram mulheres negras, algumas mulheres indígenas mas a grande maioria dos registros omitem a informação do recorte racial, segundo essa pesquisa. Outro dado importante: 56,8% dos feminicídios ocorreram dentro de casa. Ou seja, eles acham que as mulheres são propriedade! Isso tem que parar! Mas para mudarmos essa cultura misógina é preciso enfrentar a estrutura religiosa, eurocêntrica e patriarcal. Lembrando que o cristianismo e o eurocentrismo, tradicionalmente patriarcais, desde o período de caça às bruxas, deixaram marcas indeléveis no tecido social que costurou a misoginia e o machismo. Mas eles não nos intimidam porque hoje, nós temos consciência da importância da representatividade feminina na construção do coletivo, apesar dela ainda ser incipiente. Um exemplo da necessidade de ampliação está no fato de que as mulheres representam cerca de 53% do eleitorado brasileiro, no entanto, conforme dados da União Parlamentar, que analisa os dados de  dos parlamentos em todo mundo, o Brasil está em 129º lugar no ranking de participação feminina na política, o que representa apenas 18% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Os dados relacionados ao Brasil são referentes às últimas eleições para o Congresso Nacional em 2022.

A fala da Teóloga feminista Mary Hunt, em entrevista a Revista Carta Capital de 2016, traz a importância dessa representatividade, pois, para ela, as mudanças precisam ocorrer de dentro pra fora, inclusive nos espaços religiosos. Ela afirma que há mulheres feministas e religiosas, e isso não é uma incongruência, mas uma necessidade de provocar a mudança da situação de dominação do patriarcado presente nas instituições religiosas. De tal modo, é preciso construir e ocupar espaços de poder, fomentar a consciência da resistência feminista, branca, preta e trans, o que não exclui sua religiosidade nem sua fé, e instituir as mudanças de paradigmas necessárias para uma sociedade justa e igualitária, sem fogueiras e sem condenações diante das diferenças.

E pra finalizar essa reflexão, gostaria de deixar um trecho da letra de uma das músicas mais fortes que já ouvi abordando a questão: Feminelza. Música de Pitty gravada por Elza Soares no álbum “No tempo da Intolerância”

Quem você pensa que é pra dizer a alguém que pode parir

Onde ela deve ou não deve ir?

Quem você pensa que é pra dizer a alguém que sabe gerar

O que ela pode ou não falar?

Quem você pensa que é pra dizer a alguém que pode parir

Onde ela deve ou não deve ir?

Quem você pensa que é pra dizer a alguém que sabe gerar

O que ela pode ou não falar?

Você sabe o que é Nazi?

Pesquisou pra opinar?

Ou só repetiu, feito papagaio, aquilo que ouviu por aí falar

É que as fêmeas da espécie querem espaço para exercer

O vasto potencial que nos foi tomado de ser

Respeite esse corpo que dele sai gente

Que sangra sem morrer

Respeite esse corpo, ele não lhe pertence

Feminino corpo vai prevalecer

 

Referências:

LESFEM – Laboratório de Estudos de Feminicídios. Disponível em: https://sway.office.com/Dc7r5Tvr19NheTW9?ref=Link

Representatividade feminina na política: Brasil ocupa 129º lugar em ranking internacional. Disponível em: https://www.plural.jor.br/colunas/focanojornalismo/representatividade-feminina-na-politica/