Mais armas para quê?
Há em tramitação no Congresso Nacional mais de 300 projetos de lei que alteram a legislação sobre armas de fogo, entre eles está na Câmara dos Deputados o PL 5.417/2020, que possibilita campanhas publicitárias de armas de fogo proibidas pelo Estatuto do Desarmamento.
No momento, o PL está na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO) e deve ser discutido e deliberado após o recesso do Congresso Nacional.
Atualmente, a Lei 10.826, de dezembro de 2003 (Estatuto do Desarmamento) que “dispõe sobre o registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição”, prevê multa de R$ 100 mil a R$ 300 mil para as empresas de produção ou comércio de armamentos que realizarem publicidade para vendas, exceto nas publicações especializadas. Por lei, portanto, é proibida a publicidade irrestrita de armas de fogo.
Com a propaganda liberada, certamente haverá um aumento de vendas e compras de armas de fogo. A lei foi aprovada tendo por finalidade promover segurança pública por meio de rigoroso controle e fiscalização sobre a circulação de armas de fogo, munição e respectivos acessórios.
Desde o início do governo, em 2019, foram muitas as tentativas de revogar essa lei. Não por acaso o primeiro decreto do governo de Bolsonaro, de 15 de janeiro de 2019, tinha por objetivo a facilitação para aquisição de arma de fogo “para ser mantida dentro da casa ou do comércio do proprietário”.
Com o argumento de que a população está mais segura quando armada, a medida enfraquecia os requisitos estabelecidos para a concessão de armas. Este foi apenas o primeiro de dezenas de decretos e medidas nos três primeiros anos de governo para ampliar o acesso às armas. Foram editados mais de 30 atos normativos (portarias, decretos presidenciais etc.). Nesse sentido, há coerência porque o presidente cumpre uma das principais promessas de sua campanha eleitoral: flexibilizar as regras de posse e porte de armas.
Entre outros exemplos, em abril 2020, atendendo a solicitação de atiradores CAC o presidente determinou que fossem revogadas três portarias do Exército que tornavam mais rígido o rastreamento, identificação e marcação de armas e munições, ou seja, na prática maior restrição da capacidade das autoridades de rastrear e fiscalizar o acesso às armas de fogo.
Dois anos depois do primeiro decreto, em janeiro de 2021, dados obtidos pelo jornal o Globo, em parceria com os Institutos Sou da Paz e Igarapé, com base na Lei de Acesso à Informação junto ao Exército e a Policia Federal, revelou que até aquele momento havia 1, 515 milhão de armas legais nas mãos de cidadãos, que representava 65% a mais do que em dezembro de 2018.
O aumento mais expressivo, 72% se deu nos registros junto à Polícia Federal (que autoriza a licença para posse de armas para pessoas físicas), que passou de 346 mil em 2018 para 595 mil em dezembro de 2020.
Uma matéria publicada pela BBC News por Mariana Schreiber (“Dois anos de maior acesso a armas, diminuiu a violência?”) no dia 15 de fevereiro de 2021, afirma que em 2020 houve um aumento de 184% em relação em relação a 2017 e 2018 e supera os seis anos anteriores (de 2013 a 2018) e afirma, com base nos dados, que maior acesso a armas não reduziu a violência, ao contrário: houve uma reversão da queda que havia sido registrada em 2018 e revela ainda que 74% dos homicídios foram cometidos por arma de fogo.
Em 2021, dando continuidade à sua política de flexibilizar o acesso às armas, no dia 12 de fevereiro, foi publicado em edição extra do Diário Oficial da União, quatro decretos que alteram a regulamentação sobre armas, elevando a quantidade que uma pessoa poderia comprar: passou de quatro para seis (antes, em 2019 havia sido aprovado à compra de duas para quatro) e os chamados “atiradores” foram autorizados a adquirir até 60 armas e caçadores até 30 e subiu também o volume de munições que podem ser compradas: 2.000 para armas de uso restrito e 5.000 para armas de uso permitido.
Pouco depois, no dia 21 de fevereiro de 2021, o ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública, Raul Jungmann publicou uma carta aberta encaminhada ao Supremo Tribunal Federal na qual afirma que os quatro decretos eram na realidade não para segurança da população, mas uma ameaça à democracia e fazia parte de “um nefasto processo” que gera “iminente risco de gravíssima lesão ao sistema democrático” e que “ao longo da história, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão” e apelava aos ministros que os decretos fossem vetados.
Sete meses depois, em setembro, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) retomou a análise sobre a constitucionalidade de decretos editados pela Presidência da República, mas o julgamento foi novamente interrompido por um pedido de vista do ministro Nunes Marques, logo após o ministro Alexandre de Moraes votar pela derrubada das normas, seguindo os votos dos relatores – Rosa Weber e Edson Fachin – no mesmo sentido. Os três foram os únicos a votarem até aquele momento e em dezembro de 2021, o STF encerrou as suas atividades sem tomar nenhuma decisão não apenas em relação às armas, como também quanto ao aborto, descriminalização das drogas e o marco temporal para demarcação de terras indígenas. (https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2021-09/stf-moraes-vota-contra-decretos-sobre-armas-nunes-marques-pede-vista).
A discussão a respeito de se armar ou não a população, divide opiniões. Há controversas (antiga) da relação entre armas de fogo, violência e segurança pública. De um lado, os entusiastas do uso de armas que argumentam que ampliar o acesso e uso de armas de fogo ajudam a proteger não apenas as cidades como os cidadãos em particular (autodefesa), e que a atual legislação (Estatuto do Desarmamento) desarma as pessoas de “bem” e deixa os bandidos armados.
De outro, especialistas e pesquisadores da segurança pública que afirmam, com base em dados de pesquisas, que ao contrário dos que afirmam os defensores de mais armas, houve um aumento das mortes provocadas por mais armas em circulação e que em vez de proteger a sociedade, os lares e os cidadãos contribui para mais violência. E também revela a incapacidade do governo em garantir à segurança da sociedade e dos cidadãos.
O que revelam os dados em relação a 2021? Ainda não estão consolidados, mas matéria publicada no jornal Correio Braziliense no dia 19 de julho de 2021 (portanto, em sete meses do ano) assinada por Pedro Ícaro, se baseia nos dados do Fórum Nacional de Segurança Pública que revelam o aumento da violência em diversos aspectos. Houve aumento nos casos de feminicídios, recorde de mortes em operações policiais, com 6.416 óbitos — o mais alto registrado desde 2013. O levantamento indicou ainda maior violência contra a população LGBTQIA+ (homicídios cresceu 25%) e um aumento no número de assassinatos, 5% em relação ao ano anterior. https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/07/4938508-especialistas-indicam-possiveis-causas-para-o-aumento-da-violencia.html
Os defensores do armamento fazem críticas ao Estatuto do Desarmamento, mas o fato é que com ele houve uma redução da taxa de crescimento nas mortes por armas de fogo. É que mostra os relatórios divulgados pelo Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). No relatório de 2020 afirma que a taxa média anual de crescimento das mortes por armas de fogo passou de 6% entre 1980 e 2003 para 0,9% nos quinze anos após o Estatuto do Desarmamento (2003 a 2018). https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020
No Atlas da Violência 2021, verificou-se um aumento das mortes violentas por causa indeterminada, assim como da violência contra a população LGBTQI+ e contra pessoas com deficiência e indígenas (nesse caso, salientando que “a violência física não dá conta de toda violência étnico-racial e simbólica sofrida por essa população desde o nascimento do Brasil)”, e em vez de investimento em segurança pública, de proteção e defesa dos cidadãos, o que existe é uma política permissiva em relação às armas de fogo e à munição patrocinada pelo Governo Federal a partir de 2019. Ao facilitar o acesso a tais armas, a nova regulação pode favorecer a ocorrência de crimes interpessoais e passionais, além de facilitar o acesso das mesmas a criminosos, considerando a ligação entre os mercados legal e ilegal de armas – e, pior, quando tenta impossibilitar o rastreamento de armas e munições.
Conforme tem sido analisado nos Atlas da Violência desde 2019 a flexibilização (e estímulo) da política de acesso a armas e munição tem uma grande influência no aumento dos índices de crimes violentos letais intencionais, que se associa a discursos homofóbicos e ausência de políticas públicas de combater as desigualdades, a pobreza e a miséria.
Com base na revisão da literatura sobre o tema e das pesquisas (listados no final dos relatórios) o Atlas da Violência afirma existir quatro razões para justificar o maior controle de circulação de armas: a) uma arma dentro de casa faz aumentar inúmeras vezes as chances de algum morador sofrer homicídio, suicídio ou morte por acidente (principalmente crianças); b) a maior difusão de armas de fogo faz aumentar os homicídios motivados por conflitos de gênero e interpessoais (como brigas de vizinho, no trânsito, nos bares etc.); c) o fato de que quanto mais armas no mercado legal, mais armas migrarão para o mercado ilegal, permitindo o acesso a criminosos não organizados em facções; e d) finalmente a posse de armas aumenta as chances de “vitimização fatal para o próprio portador, em caso de ataque, em vista do fator surpresa”.
No entanto, mesmo com todas as evidências científicas a favor do controle responsável das armas de fogo e pelo aperfeiçoamento do Estatuto do Desarmamento, a legislação instituída desde 2019 vai exatamente no sentido contrário: decretos, leis e portarias que descaracterizam o Estatuto.
Outros aspectos relevantes é quanto são graves os efeitos da desigualdade de raça no Brasil, como os homicídios de adolescentes e jovens, a maioria negra, especialmente os moradores homens de periferia e áreas metropolitanas dos centros urbanos. De acordo com o Atlas da Violência de 2019, 75,5% das vítimas de homicídio eram pretas ou pardas. Entre os adolescentes e jovens de 15 a 19 anos do sexo masculino, os homicídios foram responsáveis por 59,1% dos óbitos. Assim como o aumento de assassinatos de mulheres, vítimas de feminicídio (que dados mostram como aumentou em 2020, com a pandemia), especialmente em relação a mulheres negras e pobres.
Como disse o deputado Marcelo Freixo em artigo publicado no dia 19/02/2021(Folha de S.Paulo): A política armamentista, que alimenta fanáticos, não tem nada a ver com segurança pública e que “é a ponta de lança de um projeto autoritário e violento que fragiliza o sistema democrático”. Segundo dados obtidos por ele, só no primeiro semestre de 2020, foram comercializados 139.334 armas, quantidade maior que o total registrado em 2018 (138.106). O registro de armamentos para os CACs cresceu 120% entre 2019 e 2020, somando quase 1 milhão de unidades”.
A questão é: Mais armas, para que? Os estudos feitos não apenas no Brasil como em outros países, indicam que mais armas em circulação geram mais violência e não o contrário. O estímulo, o culto às armas e a violência, não pode ser fonte de solidariedade, de construção de laços sociais sólidos, baseados no respeito ao outro.
A conclusão é que mais armas têm impacto negativo na segurança, e como se afirma no Atlas da Violência “Não se trata de ‘mito’ ou resistência a outras teses, mas da conclusão de estudos conduzidos com base em dados e com rigor científico” e que “os desdobramentos da política armamentista que está em curso no Brasil produzem riscos de elevar os números de homicídios a médio e longo prazos. À luz das evidências científicas, essa política deve ser reavaliada o quanto antes, não apenas para que assim sejam reduzidos os danos trazidos na atualidade a toda a sociedade, bem como os riscos futuros contra a vida e a segurança dos brasileiros”. (https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf).