O alienista e a bastilha da razão humana
Sempre gostei muito de Machado de Assis, principalmente a fase realista-naturalista. Quem acompanha minhas colunas deve lembrar que certa feita escrevi sobre seu conto “A igreja do diabo”. Esta semana tive o prazer de reler o conto O Alienista, e, obviamente, não pude deixar de comparar, mais uma vez, os fatos narrados com a realidade social e política na qual vivemos.
O conto se passa em Itaguaí, interior do Rio de Janeiro, em tempos imperiais. Tendo em vista a narrativa e o início da escola realista no Brasil, observamos que o conto ocorre em fins do século 19 – por volta de 1881 -, e traz a história de Dr. Simão Bacamarte, médico com boa reputação na Europa e no Brasil, que resolve voltar a sua cidade natal para dedicar-se à ciência. Nesse contexto, ele inaugura a Casa Verde, um lugar para tratar os loucos da cidade – os que ele passara a julgar como loucos – estudando-os e catalogando suas doenças mentais. Os “doentes” passaram a ficar confinados em um lugar chamado pelo barbeiro, personagem que lidera uma revolta contra a Casa Verde, de “Bastilha da razão humana”. Cabe dizer que a Casa Verde era financiada através de um estipendio aprovado pela câmara de vereadores quando a família não pudesse arcar com os custos da internação.
Machado de Assis explora temas pertinentes e realistas à sociedade em seus diversos contos, mas em “O Alienista”, especialmente, ele aborda a questão da loucura e do poder de forma intrigante até para os dias atuais. A Casa Verde e as posturas do Dr. Simão Bacamarte incitam-nos reflexões sobre as instituições, o exercício de poder em nossa sociedade e a ganância desenfreada em busca da manutenção do status quo das pessoas que estão em um lugar de poder, mesmo sem a competência para isso e muitas vezes por questões meramente políticas.
A referência à “Bastilha da razão humana” é especialmente relevante quando consideramos os paralelos com certos grupos de apoiadores fervorosos da extrema direita no Brasil. Há uma dinâmica social e política semelhante àquela descrita por Machado de Assis. E por falar em política, talvez seja necessário acentuar que certamente o “Doutor” Simão Bacamarte não pode ser comparado ao genocida e ex-presidente Jair Bolsonaro tendo em vista que este é negacionista enquanto o alienista é a favor da ciência. Talvez seja redundante, mas é imprescindível dizer que o bolsonarismo, fênomeno que caracteriza a ascenção da extrema-direita no Brasil, é cego e ininteligível, por isso, é avesso à ciência, arte e toda cultura produzida no seio da coletividade que pensa comunitariamente. A comparação entre o conto e a nossa realidade está voltada muito mais para as dinâmicas sociais e políticas descritas nele, do que para as características individuais dos personagens. Mas o fato é que os alienados estão em todas parte, negando a ciência, a política e a própria vida. E o alienista, muitas vezes, pode ser também, um alienado.
Etimologicamente, a palavra alienação tem origem no latim alienare e quer dizer “tornar alguém alheio a alguém”. Sociologicamente pode-se compreender a alienação como um o processo no qual se converte um sujeito em um estranho em si mesmo, alguém que pode ser percebido como desconhecido, alheio, que perde a ciência de sua própria identidade convertendo-se em um outro que não traduz sua real identidade, sua natureza enquanto Ser.
Como conceito filosófico, o termo foi pensado, pela primeira vez, pelo alemão Hegel e está relacionado a um vazio existencial. Segundo Hegel, há uma objetificação do sujeito que transfere suas potencialidades para os objetos criados por ele. Marx faz uma crítica a Hegel e considera o termo alienação como sendo um alheamento, o que ocorre, dentre outras coisas, quando o indivíduo afasta-se de sua própria natureza e da natureza dos demais, perdendo a noção do valor do seu trabalho por ser parte dos meios de produção. É a alienação do homem pelo homem que se torna visível na relação entre o operário e o capitalista.
Tomando o conceito de alienação de forma mais geral, observa-se no mundo contemporâneo a grande bastilha tomar corpo, mas certamente esse corpo se forma diante do grande vazio existencial provocado pela dicotomia nascida no ventre da modernidade. Eu penso, logo eu existo! Mas o que eu penso? Penso a partir da minha natureza ou daquilo que é utilizado para preencher o vazio que a modernidade provoca? Penso a partir da minha natureza ou da natureza criada e introjetada para parecer a realidade. Estou na caverna acreditando que estou fora dela ou realmente estou fora e tentam me convencer a entrar por acreditarem que a verdade está lá dentro e que lá estão protegidos? Será essa a grande bastilha?
Muitas perguntas ficam no ar, mas, certamente, a maior das respostas está no nosso íntimo mais profundo e lacônico, na nossa reconexão com o nosso eu que vive sufocado com tantas situações e pessoas alienantes e, muitas vezes, alienados em si mesmos. A resposta não é dada prontamente. É preciso burilar cada centelha de pensamento livre, todavia, e certamente, ela não é única e não se refere ao indivíduo. Não estamos sós no universo e a grande dinâmica social é algo vivenciado apenas coletivamente, portanto, cabe a cada um de nós pensarmos no coletivo para curar as feridas causadas pelas insanidades vertiginosas de seres egoístas e alienantes, trazer cada um para fora da caverna, libertar da bastilha e devolver à razão humana para a coletividade. É no coletivo que pensa coletivamente que podemos libertar os alienados da Casa Verde. É no coletivo que nos vemos uns através dos outros, que praticamos nosso Ubuntu, ou seja, nossa capacidade de ser humano, generoso e solidário com os nossos semelhantes, e enxergamos quem são os seres alienantes. A saída da casa Verde propicia não apenas a queda da bastilha como também o isolamento dos que nos buscaram alienar.
REFERÊNCIA:
ASSIS, Machado de. O Alienista. São Paulo: Lafonte, 2019.
Muito interessante o texto fazendo um paralelo de Machado de Assis com a realidade atual, fundamentada na figura mitológica de um sujeito sem caráter, mas que carrega em seu embrião um pensamento conservador que agrada boa parte da população. Dentro dos escritos realistas também vemos José Saramago no Ensaio sobre a Cegueira mostrar em seu livro Publicado em 1995, o romance diatópico explora os limites da civilização e da moralidade em uma sociedade que enfrenta uma epidemia inexplicável de cegueira. A trama se desenrola em uma cidade anônima onde, de repente, as pessoas começam a perder a visão, uma a uma, afetadas por uma cegueira branca.
Texto maravilhoso! Me representa. Que esse texto possa chegar à muitos que buscam essa clareza de horizonte. Gratidão! Bjs…