Quando foi que esquecemos de Mateus 7?

Esta semana recebi um texto de um colega Emmanuel Falcão, que me trouxe interessantes e necessárias reflexões, por isso, aqui o replico para você, caro leitor. O faço porque o texto tem uma conexão com nossas colunas e porque considero ser esta uma importante contribuição na atual conjuntura política em que vivemos. Aqui, deixo minha gratidão por ter aceitado o desafio de discutir política e religião. Segue o texto:

*Por Emmanuel Falcão

“Não julguem, para que vocês não sejam julgados” parece ter saído de moda. Foi esquecido. Flopado. Portanto, é necessário resgatar esse versículo, porque precisamos falar dos evangélicos que são julgados por parte da própria comunidade evangélica ao não declarar voto em Bolsonaro.

Vejo acontecer direto, as vezes em grupos de Whatsapp, outras vezes em fóruns, chats de youtube e sobretudo no twitter. A segregação ‘do rebanho’, a discriminação fraternal, às vezes ao estilo dos irmãos da parábola do ‘filho pródigo’, às vezes aparecendo em altas temperaturas como as perceptíveis em Caim e Abel. Em alguns momentos, evangélicos descredenciam outros evangélicos, por meio do que as ciências sociais definiram como ‘sentimento de superioridade moral’, veículo fomentador do ‘pânico moral’.

Tá, sejamos francos: Esse fenômeno impacta negativamente a democracia do Brasil e no mundo. De modo geral, Stanley Cohen (1987) explica que esse sentimento trata, como ameaça, certos comportamentos de minorias que, teoricamente, poderiam trazer desordem a moralidade estabelecida pelas religiões e sociedade hegemônica. Vamos visualizar essa eventualidade com alguns exemplos de pautas: casamento gay, aborto, divórcio, mulheres que não querem ser mães biológicas, relacionamentos abertos, entre outros. Vamos analisar um exemplo mais de perto? Em 05/04/2022, o ex presidente Lula afirmou que o aborto é uma questão de saúde pública, e que todo mundo deveria ter esse direito, “[…] por mais que religião não goste”.

Quem acompanha a participação de Lula pela internet, sabe que ele já afirmou, múltiplas vezes, que particularmente ele é contra o aborto. Um exemplo dessa fala aconteceu no canal da Thelminha, enquanto transmitia o programa ‘Triangulando’, em 01/09/2021. Lula disse ser contra o aborto, mas que o Brasil precisava encarar isso como problema de saúde pública. Pois mesmo que seja ilegal e crime no Brasil, mulheres, a maioria pobres, abortam todos os anos.

Não é a primeira vez que Lula é associado, negativamente, a pauta do aborto, enquanto um direito da luta feminina. Em 1989, na campanha contra Fernando Collor de Melo, uma ex namorada de Lula, Miriam Cordeiro, foi paga para dizer que Lula pediu para que ela abortasse. História desmentida por ela mesma, ainda no mesmo ano.

Nessa hora aparece o ‘pânico moral’ influenciado pelo sensos de pessoas que se sentem superiores moralmente. Conforme os tweets de Eduardo Bolsonaro, quais sejam: “O que é uma mentira para um assassino de bebês?”, post com a foto de Lula, em 08/04/2022. Outro post foi “Bela sugestão de decoração de porta (emoji de aplausos) @FlavioBolsonaro”, em 07/04/2022, com uma foto que dizia: “Seguidor de Lula não adianta bater na minha porta! Aqui respeitamos a vida e a família! Somos contra o aborto!” e uma placa de ‘proibido’ com a foto de Lula no centro.

É após esses julgamentos morais, que começam com Lula, migrando para os apoiadores do petista, que a agressão linguística se apropria de termos religiosos e se converte em tweet como “Ou você é cristão, ou vota no Lula. Os 2 não dá”, postado em 08/04/2022. A preocupação com a vida humana em formação gestacional parece ser o alvo da postagem de Eduardo Bolsonaro, que dias antes postou o tweet que dizia “ainda com pena da (emoji de cobra)”, em resposta a um post de Miriam Leitão, que, enquanto estava grávida, foi torturada nos porões da ditatura, com agravo psicológico, por uso de uma cobra.

Para os protetores de animais, torturar animal, ou usar animal, para torturar mulheres em gestação, é tão nojento e repugnante quanto fazer piadas com isso. Parece que Eduardo Bolsonaro não se preocupou com a vida em gestação de uma mulher em situação de tortura. Se preocupa com a vida de fetos, menos a de fetos que são filhos de quem critica o governo de seu pai. Mera hipocrisia de caráter eleitoral.

Esses tweets são exemplos da incitação ao ‘pânico moral’ (COHEN, 1987). Ou seja, na natureza dessa análise, lideranças políticas da extrema direita, com fins de infectar o debate político público, incita fiéis, a base de manobras que reforçam falsas noções de superioridade moral, a não permitir o debate.

Nos dias que esses tweets foram postados, em especial 07/04/2022 e 08/04/2022, os termos “padre abortista” e “pastor do satanás” ficaram ‘em alta’ no twitter, como palavras mais citadas, em especial pela base aliada ao bolsonarismo, contra padres e pastores que sinalizaram apoio a fala de Lula. Relembrando ao leitor dessa coluna, que Edir Macedo já foi “pró-aborto” e tem esse argumento registrado em livro de própria autoria. Já em 03/04/2022, a palavra “cobra” e o “emoji de cobra” foram um dos termos mais citados no twitter.

Assim, parte do campo evangélico, que não é homogêneo, muitas vezes entra em atrito com apoiadores de Bolsonaro, que julgam a ala que pensa diferente deles, como ‘comunistas’, ‘pecadores’, ‘falsos cristãos’, entre outros rótulos identitários, tido como ‘negativos’ ao olhos deles.

As ‘crianças’ são, costumeiramente, o alvo do debate moral, a exemplo de Damares Alves que, com o argumento de proteger a vida de uma criança, quis ameaçar a vida de outra. No caso, de uma menina de dez anos que estava grávida do próprio tio que abusava sexualmente dela desde os seis anos de vida. Damares expos a vida da menina grávida, inflamou apoiadores a ficar na porta de hospital, tudo para dificultar um direito, garantido por lei, em casos como esse que segue a favor do aborto.

E a frase ‘comunista come criancinha’, você já ouviu? Kit gay? ‘mamadeira de piroca’? Preocupação de adoção por casais homoafetivos? Pepsi adoçada com células de fetos abortados? Todas, exemplos de manobras de algumas lideranças conservadoras, que se julgam cristãs, e como método, instrumentalizam sua base para demonizar adversários e pensadores com visões diferentes do direito básico e fundamental de minorias, como são os pobres, os negros, as mulheres, os gays.

Os algoritmos das redes sociais, em conjunto com uso de ‘bots’ afloram o ecossistema de “julgamentos morais”, e o subproduto são os discursos de ódio, insulto, intolerância que começam a afetar a possibilidade de diálogo. A programação atual das redes sociais, em conjunto com a instrumentalização de pautas, supostamente, “conservadoras morais”, favorece a construção de currais eleitorais a favor de Bolsonaro através de lideranças religiosas que, utilizando metáforas do imaginário cristão, dizem “Lula é o satanás”, ou “Alexandre de Moraes é o capeta careca”, como insinuou Damares em 13/04/2022.

Tentar argumentar, por parte dos que insistem no debate, de que o próprio Bolsonaro sugeriu abortar seu filho ‘zero quatro’, Renan Bolsonaro, fruto de um relacionamento extraconjungal, e que quem optou pelo ‘não aborto’ foi a mãe do Renan, é inútil. A ala ensandecida, se recusa a ler argumentos. Sempre reduzem o debate para ofensas, ataques, e, em muitos casos, ainda dizem que “Bolsonaro é o escolhido por Deus”. São desinformados por escolha, não por falta de quem quisesse apontar dados.

Assim, os temas tabus da sociedade não conseguem espaço no debate público por causa dos contextos de ordem religiosa que o conservadorismo tradicional visa impor a toda sociedade, o modo como se deve viver ou como se deve criar as crianças é ditado por múltiplas lideranças cristãs que, além de serem hegemonias religiosas, também são hegemonias econômicas e políticas.

O Mc Reaça, que fez uma paródia musical a favor de Bolsonaro, cantava “[…] Pra votar Bolsonaro minha mão já tá tremendo / Dou pra CUT pão com mortadela / E pras feministas, ração na tigela / As mina de direita são as top mais bela / Enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela / […] / E o Bolsonaro casou com a Cinderela / Enquanto o Jean Wyllys só tava vendo novela / […] / Pega o Paulo Freire e manda pra estratosfera / Um Brasil pra frente é o que o povo espera / Vamo distribuir livro do Olavo pra galera / […]”, foi o mesmo que cometeu suicídio após espancar sua amante, por ela estar grávida. Deixou uma carta de suicídio, pedindo pra família cuidar do bebê, caso ele tivesse sobrevivido ao espancamento. Bolsonaro fez um tweet, no dia 02/06/2019, prestando homenagem, dizendo que “[…] Tales Volpi, conhecido como Mc Reaça, nos deixou no dia de ontem. Tinha o sonho de mudar o país e apostou em meu nome por meio de seu grande talento. Será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor pelo Brasil. Que Deus o conforte juntamente com seus familiares e amigos”.

A coerência, nos julgamos morais daqueles evangélicos que se posicionam nos fóruns, parecem ter alvo. Você pode esfregar na cara da seu irmão em Cristo, as falas de Bolsonaro, dos filhos deles, das lideranças religiosas que eles seguem, que eles não usam a mesma proporção de ‘condenação moral’ para julga-los. É uma ‘cegueira seletiva’. Interessantíssimo fenômeno sociorreligioso, embora de grande pesar democrático. E aí, com o tempo, parece haver diminuição da possiblidade de confraternização entre evangélicos antes das eleições. Uma ala se julga ‘moralmente superior’ e outra ala se julga ‘intelectualmente apática’. Enquanto um pensa o ditado popular ‘[…] me diz com quem andas e te direi quem és’ outra ala pensa o versículo ‘[…] não vou mais jogar pérolas aos porcos’. Espero que Mateus 7 volte logo para o seio da comunidade cristã.

*Emmanuel Falcão é Doutor em Filosofia da Educação e Doutorando em Ciências das Religiões.

Referências:

GGN, Jornal. “DEFENSOR da vida”, Bolsonaro pensou em abortar Jair Renan, mostra reportagem antiga: Em entrevista publicada em fevereiro de 2000 na revista IstoÉ Gente. Disponível em: https://jornalggn.com.br/politica/defensor-da-vida-bolsonaro-pensou-em-abortar-jair-renan-mostra-reportagem-antiga/. Acesso em: 19 abr. 2022.

COHEN, Stanley. Folk Devils and Moral Panics: The Creation of the Mods and the Rockers. Oxford: Basil Blackwell. 1987.

EDUARDO BOLSONARO. https://twitter.com/bolsonarosp. Twitter @Bolsonarosp. Acesso: 19/04/2022

JAIR BOLSONARO. https://twitter.com/jairbolsonaro. Twitter @JairBolsonaro. Acesso: 19/04/2022

LULA E MARTIN SCHULZ DEBATEM PARCERIAS ENTRE BRASIL, ALEMANHA E UE. LULA. 2022. Entrevista (150 minutos). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mhSbimr_Ym8. Acesso em: 19 abr. 2022.

O DIAMC Reaça espancou amante antes de cometer suicídio, diz políciaAgente de viagem de 28 anos, que seria sua amante, está internada em estado grave. Presidente Jair Bolsonaro usou as redes sociais para lamentar a morte do youtuberhttps://odia.ig.com.br/São PauloDisponível em: https://odia.ig.com.br/brasil/2019/06/5649183-mc-reaca-foi-denunciado-por-espancar-mulher-antes-de-cometer-suicidio.htmlAcesso em: 19 abr. 2022.

TRIANGULANDO com Lula, Linn da Quebrada, Celso Athayde e Gil do Vigor: Desigualdade Social. Thelminha. 2021. Entrevista (134 minutos). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-_6L_YxJlHM. Acesso em: 19 abr. 2022.