Opinião

Democracia, pra que te quero?

“Sopram ventos malignos no planeta azul”. A afirmação do sociólogo espanhol Manuel Castells é a mais fiel tradução do duro momento político que atravessamos, com ataques às garantias constitucionais, e mais: com a inversão dos valores democráticos por grupos de extremistas. O que o Brasil vive hoje é reflexo de um movimento mundial capitaneado por líderes populistas de direita. Esses ventos sopraram antes pela Europa, chegando à Asia e aos Estados Unidos, turbinando aqui, incialmente, uma onda conservadora que reforçou preconceitos e ataques contra as minorias ou grupos minorizados e que, mais tarde, já em terreno fértil, ganhou viés autoritário com propagação de um discurso xenofóbico e patriarcal, pautado pelo ódio ao que é plural e diverso.

A pandemia da Covid-19, a ineficiência na condução da crise sanitária pelo Planalto, e o consequente aprofundamento da crise econômica com aumento do desemprego e desaceleração do crescimento, contribuíram com esse cenário; semearam preconceito e intolerância. Cobraram ordem por meio da desordem. Foi justamente na pandemia que esses grupos extremistas ganharam fôlego no Brasil. Na pauta, o fechamento do Congresso Nacional, a prisão de Ministros do Supremo Tribunal Federal. Paradoxalmente usam a democracia para pregar o fim dela. Líderes populistas adoram explorar isso! É o que antropólogo indiano, Arjun Appadurai chama de fadiga da democracia. Na Índia, ele viu o avanço da tirania por meio de uma política higienista, ultranacionalista e projetos econômicos neoliberais que solapam os direitos humanos.

Nos Estados Unidos de Donald Trump, a história se repetiu: projeto de supremacia branca e retomada da economia por meio da segregação, da caça aos imigrantes e aos pretos. No entanto, os protestos que varrem cidades norte americanas desde o assassinato de um homem negro por um policial branco mostram exaustão desse modelo. Os manifestantes marcham contra a política da exclusão. Interessante notar que aquilo que era saída outrora agora perde espaço para fome e a sede de justiça e liberdade, dois grandes pilares da democracia. Há nos Estados Unidos um embate já demonstrado em outras partes do globo: de um lado, a voz retumbante das ruas; do outro, poder de polícia do Estado e a tentativa de abafar o que ameaça seu controle. E na história da humanidade não são poucos os exemplos de opressão aos que se levantam contra o sistema e clamam por igualdade.

Mas… E quanto ao Brasil onde a democracia ainda está embalada em cueiros? Instituições em crise, Poderes em guerra por um tensionamento constante provocado por um presidente democraticamente eleito que fala em armar a população para estabelecer grupos civis paramilitares contra outros gestores igualmente eleitos pelo viés democrático. Sem conversa, pela força. Mais autoritário que isso, como diz o ditado, só dois disso. Está aí um dos paradoxos da democracia. Platão falou disso. Karl Popper, um filósofo austríaco, morto na década de 90, teorizou sobre isso. Eis que aqui também a democracia deu sinais de fadiga com a ascensão dessa antipolítica, do antissistema. Foi uma saída pela extrema-direita. Appadurai diz que essa “saída é uma forma de dar voz à satisfação ou decepção”. É o desejo cego de se fazer ouvir, de romper com um Estado que não solucionou as carências do povo. Na prática, um voto de protesto. Voto cego, surdo e manco porque não racional.

Lembro-me agora de Clarice Lispector. Ela escreveu: “mude, mas comece devagar porque a direção é mais importante que a velocidade”. Aqueles que buscam milagres e mitificam pessoas na crença de que elas solucionarão problemas crônicos como a miséria e violência num passe de mágica certamente não leram ou não deram ouvidos à Clarice. Perdoem-me o apelo poético. É que a poesia, assim como a filosofia e as ciências sociais, nos ajuda a romper com o óbvio, e nos impulsiona para fora da caverna da ignorância em busca do entendimento à luz da razão. Aqui eu cito Platão mais uma vez… É um recorte no tempo que talvez mostre como nos tornamos vulneráveis quando nos guiamos pelo medo, pelo cansaço e deixamos a emoção calar a razão.

De fato, ventos sombrios sopram nessas terras. Com alguma reação – tímida e retardatária – do parlamento e do judiciário, milícias digitais avançam no anonimato propagando mentiras e espalhando desinformação – publicações impulsionadas por bots ou robôs virtuais para manipular a opinião pública e criar mais e mais instabilidade. Há também uma forte pressão popular, embora limitada à esfera virtual, por medidas enérgicas contra movimentos reacionários com traços fascistas, e um estranho comportamento daqueles que guardam a Constituição e o Parlamento.

O que esperam? Fico pensando se a estratégia é deixar que esses movimentos enfraqueçam o presidente que tem apoiado protestos contra a democracia, criado crises entres os Poderes e produzido uma série de descalabros quando o assunto é segurança sanitária. Pode ser. É uma estratégia. Arriscada, mas é. Mas me pergunto também, instigada por outro paradoxo, o da tolerância, também pensado pelo Popper, como tolerar o intolerável?  E, nesse caso, o intolerável de forma muito objetiva é o desrespeito à lei, à carta cidadã, à segurança nacional por meio da incitação à violência e ao terrorismo. Ora, não há direitos absolutos. Ninguém deveria passar incólume diante do cometimento de crimes, mesmo que estes tenham aparência de liberdade de manifestação.