A democracia brasileira em declínio
Três relatórios internacionais sobre a democracia no mundo revelaram que os espaços democráticos têm encolhido em muitos países, em todos os continentes, e revela está havendo um colapso da democracia ou uma recessão democrática no mundo.
Segundo o relatório mais recente publicado no dia 22 de novembro de 2021 – O estado global da democracia 2021, Construindo resiliência na era da pandemia – do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), sediada em Estocolmo (Suécia), em 2020 mais de um quarto da população mundial vive em democracias em retrocesso, e se somados os regimes autoritários e híbridos (com uma tendência à degradação democrática) seriam em torno de 70% dos países.
Para 2021, uma análise provisória do IDEA aponta 98 democracias, o número mais baixo em vários anos, 20 regimes “híbridos” (como, entre outros, Rússia, Marrocos e Turquia), e 47 regimes autoritários, entre eles China, Arábia Saudita, Etiópia e Irã.
Esses dados confirmam as constatações de dois relatórios anteriores, um do Instituto Variações da Democracia (V-Dem), da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, que publicou em março de 2021 um documento com dados relativos a 202 países, com 450 indicadores de democracia (estabelece índices que variam de 0 a 1, no qual 0 representa um regime ditatorial e 1 uma democracia plena).
A pesquisa apontou que entre 2010 e 2020 houve uma deterioração da democracia. Em 2010, 48% da população mundial viviam sob regimes considerados não democráticos e este índice subiu para 68% em 2020. Entre esses países estão o Brasil (a partir de 2016), Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia que registraram as maiores quedas nos índices de democracia. No grupo do G-20, além de Brasil e Turquia, houve também uma queda nos índices de democracia na Índia que passou a ser classificada como “autocracia com eleições”.
De acordo com o índice de qualidade da democracia do Instituto, o Brasil deixou o grupo das 30 democracias mais sólidas do mundo no qual figurava no início da década passando em 2020 a ocupar a 56ª posição.
Outro relatório sobre democracia no mundo é do Instituto Freedom House (Estados Unidos) no qual constata índices similares ao do V-Dem, mostrando que desde 2018 houve uma queda acentuada dos índices de liberdade e democracia.
Em relação ao Brasil, numa escala de 0 a 100, em 2017 tinha 79 pontos, caiu para 74 em 2020, evidenciando um retrocesso democrático no país.
O relatório mais recente, do IDEA, acompanha cerca de 160 países e classifica as nações em três categorias: democracias (mesmo as consideradas “em declínio”), regimes híbridos e regimes autoritários. Para medir o grau de democracia nos países, leva em consideração vários fatores e critérios como “a legitimidade dos governantes, a participação da sociedade nas definições de políticas públicas, a impessoalidade da administração pública, a garantia de direitos fundamentais e o funcionamento do sistema de freios e contrapesos”.
A constatação é que houve um retrocesso na maioria dos países em relação a esses critérios e revela ainda que o Brasil, cuja democracia está em declínio desde 2016, foi o país que registrou o maior retrocesso democrático em 2020, ou seja, o país do mundo que mais perdeu atributos democráticos.
Além do Brasil e a inclusão dos Estados Unidos pela primeira vez entre os países que registraram retrocesso democrático em 2020, citando a “guinada histórica” dos questionamentos em relação aos resultados das eleições presidenciais de novembro de 2020 por Donald Trump e “a redução das investigações do Congresso sobre a ação do presidente entre 2018 e 2020”, são citados, entre outros, a Turquia, Índia, Filipinas, Polônia, Hungria e Eslovênia, Sérvia, Nicarágua, Mianmar, Afeganistão e Mali (os três últimos passaram de regimes híbridos para regimes autoritários) e em relação à África, além do Mali, o relatório se refere a “declínios recentes da democracia” com golpes militares no Chade, Guiné-Conacri e Sudão.
Segundo o relatório pelo quinto ano consecutivo, o número de países que se tornaram autoritários superou o de países em processos de democratização.
Sobre o Brasil mais especificamente, cita o presidente Jair Bolsonaro como o responsável pelo retrocesso democrático e afirma que ele “testou abertamente as instituições democráticas”. A partir de 2019, com o início do governo e depois da pandemia que já causou a morte de mais de 600 mil pessoas, destaca a (má) gestão da pandemia, escândalos de corrupção, convocação e participação em atos antidemocráticos, ameaças às instituições democráticas e menosprezo pela crise sanitária.
Em relação ao declínio democrático, o relatório se refere à afirmação do presidente da República de que não iria respeitar mais as decisões do Supremo Tribunal federal (STF), as hostilidades contra jornalistas, questionamentos quanto à lisura das eleições ameaçando antecipadamente de não reconhecer o resultado da eleição presidencial de 2022, caso não seja (re)eleito, sinalizando para os seus seguidores uma mobilização com os mesmos procedimentos que seguidores de Donald Trump provocaram nos EUA ao ser derrotado por Joe Biden (invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021).
No artigo O declínio da democracia brasileira (O Estado de S.Paulo, 26 de novembro de 2021), Fernando Gabeira afirma que “Não há dúvida de que a maior ameaça à democracia no Brasil nasce com Bolsonaro e seus aliados” e que o presidente é “o principal ator do declínio democrático, mas não o inventou, apenas tirou partido da crise, para aprofundá-la ainda mais”. Para ele “Um dos argumentos da escalada autoritária era a luta contra um sistema corrompido. Sem voltar atrás nas suas pretensões antidemocráticas, Bolsonaro recuperou algumas das práticas que alimentaram sua aventura. O jogo de toma lá dá cá no Parlamento, do qual o chamado orçamento secreto é a principal expressão, mostra que Bolsonaro usa de duas armas simultâneas para atacar o processo democrático. Usa a decadência para defender suas pretensões autoritárias e, ao mesmo tempo, aprofunda o fisiologismo para se manter no governo”.
Larry Diamond no livro O espírito da democracia: a luta pela construção de sociedades livres em todo o mundo (Editora Atuação, Curitiba, 2015) mostra que esse processo não começou agora, apenas se aprofundou com o passar dos anos. Assim, em vez de se ter mais democracia no mundo ocorreu o inverso. Ele afirma que desde 2000 foram contabilizados 25 colapsos democráticos no mundo “não apenas através de flagrantes golpes militares, mas também por meio de degradações graduais de direitos democráticos e procedimentos que por fim empurraram a democracia acima do limiar do autoritarismo”.
Os dados disponibilizados pelos dois institutos citados e o do IDEA são preocupantes, e a questão é: será o colapso da democracia inevitável e irreversível ou depende da capacidade de resistência dos setores democráticos da sociedade? Creio que depende da capacidade de articulação e organização dos que defendem a democracia e, nesse sentido, é de fundamental importância a construção de uma Frente Ampla em Defesa da Democracia que congregue todos os que lutam contra o autoritarismo, o fascismo ou neofascismo em suas diversas manifestações.