A esquerda e a Federação de Partidos 

Desde o fim da ditadura militar (1964-85) em momentos de crise política, o Congresso Nacional discute propostas de reforma política e desde 1995 foram constituídas muitas comissões temporárias com o objetivo de elaborar e votar uma ampla reforma política, o que não aconteceu. Ao longo dos anos foram aprovadas mudanças no sistema eleitoral e partidário, mas não uma reforma política.

E entre as muitas propostas discutidas e até aprovadas em comissões, mas que não foram votadas no Congresso Nacional está à federação de partidos. Na comissão de reforma política da Câmara dos Deputados em 2015 e que teve como relator o deputado Rodrigo Maia, foi defendida por ele, mas não aprovada em plenário. 

Depois, houve uma minireforma eleitoral em 2017, o tema voltou à discussão, mas também não foi aprovado sequer na comissão. O que foi aprovado e que teve impacto na eleição de 2018 foi a proibição de coligações em eleições proporcionais.

A proposta só voltou a ser discutida em 2021 e no dia 12 de agosto foi aprovado na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 2.522/15, que havia sido aprovado no Senado, que permite aos partidos políticos se unirem em uma federação a fim de atuarem como uma só legenda nas eleições e durante a legislatura.

O que é federação de partidos? É uma união de legendas no qual todos os integrantes ficam submetidos a um estatuto enquanto durar o mandato. Caso, por exemplo, um parlamentar decida não seguir a orientação da sua federação numa votação, ou então sair de um dos partidos, estará sujeito às punições da legislação sobre fidelidade partidária.

A federação é diferente de coligação partidária. Esta se desfaz após a realização das eleições, têm, portanto, temporalidade limitada, enquanto que a federação tem como um de seus principais atributos o fato de ter, em princípio, uma atuação parlamentar mais coesa, estável, e duradoura. 

O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, no dia 8 de dezembro de 2021, ao proferir decisão cautelar na Ação Direta e de Inconstitucionalidade, ADI /7021 em defesa da federação de partidos, refuta a ideia de que a federação é um retorno dissimulado da coligação proporcional. Para ele, a federação permitirá a “formação de alianças persistentes entre partidos, com efeitos favoráveis sobre o sistema partidário”. 

A formação de uma federação de partidos tem por objetivo assegurar a eleição de parlamentares e/ou o direito a funcionamento parlamentar com afinidade ideológica e programática, e beneficia pequenos partidos que teriam dificuldades, com a cláusula de barreira e o fim das coligações, de atingirem o quociente eleitoral e garantirem representação no Parlamento. 

A federação nasce com o registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e subsiste durante a legislatura. Também não se trata de fusão ou incorporação de partidos políticos. A fusão ocorre pela união de dois ou mais partidos e que resulta em um novo partido político. Nesse caso, os partidos são extintos para a criação de uma nova legenda. 

Em relação ao tempo de propaganda eleitoral ela será destinada não aos partidos individualmente, mas à federação. No entanto, as candidatas e candidatos utilizarão o número dos partidos políticos a que são filiados. Os votos, compartilhados dentro da federação, poderão contribuir para a eleição de representantes de partidos distintos. Nesse sentido, lembra o funcionamento das coligações hoje em vigor, mas difere com a federação porque esta tem por característica essencial o funcionamento parlamentar unificado e assim, em princípio vai gerar um compromisso de atuação conjunta dos parlamentares eleitos.

O projeto aprovado no dia 12 de agosto de 2021 que, como dissemos, aguardava deliberação na Câmara dos Deputados desde 2015 e sistematicamente adiada, foi enviado para sanção presidencial. 

No entanto, no dia 8 de setembro de 2021 o presidente da República vetou integralmente o Projeto de Lei. A justificativa foi a de que em 2017 tinha sido aprovada uma mudança na Constituição vedando as coligações partidárias nas eleições proporcionais e que “combinada com as regras de desempenho partidário para o acesso aos recursos do fundo partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão tiveram por objetivo o aprimoramento do sistema representativo, com a redução da fragmentação partidária e, por consequência, a diminuição da dificuldade do eleitor de se identificar com determinada agremiação. Assim,  a possibilidade da federação partidária iria na contramão deste processo, o que  contraria interesse público”. 

O projeto retornou ao Congresso, que no dia 27 de setembro de 2021 derrubou o veto presidencial e no dia seguinte foi promulgada a lei n. 14.208/21 que institui federações de partidos políticos, definido já para as próximas eleições que “dois ou mais partidos políticos poderão reunir-se em federação, a qual, após sua constituição e respectivo registro perante o Tribunal Superior Eleitoral, atuará como se fosse uma única agremiação partidária”.

Pela lei aprovada, aplica-se à federação de partidos todas as normas que regem o funcionamento parlamentar, como a fidelidade partidária e a preservação da identidade e da autonomia dos partidos integrantes da federação e estabelece que somente possa ser integrada por partidos com registro definitivo no Tribunal Superior Eleitoral, os quais deverão permanecer filiados pelo prazo mínimo de 4 (quatro) anos, tendo abrangência nacional. 

Foi definido também que os partidos que quiserem desligar-se da federação, não poderá ingressar e coligar em nova federação nas próximas duas legislaturas (período de oito anos) e também não poderá utilizar o Fundo Partidário. Já o detentor de mandato eletivo que se desfiliar de um dos partidos integrantes da federação, perderá o mandato. As sanções não serão aplicadas se a extinção precoce da federação decorrer de fusão ou incorporação entre os partidos integrantes.

No dia 14 de dezembro de 2021, por unanimidade, o TSE aprovou a minuta da Resolução 23.670 (publicado no Diário Oficial da União no dia 17/12) sobre a regulamentação da federação  partidária, definindo de no mínimo seis meses antes da eleição: “A fim de assegurar a isonomia com os partidos políticos, a participação da federação nas eleições somente será possível se o deferimento de seu registro no TSE ocorrer até 6 (seis) meses antes das eleições, observadas as demais disposições aplicáveis da resolução que tratar do registro de candidatura”.

Ficou definida também que a federação elegerá um órgão de direção nacional, com estatuto e programa, condição para requerer registro no TSE e que os partidos federados poderão somar votos e representantes para fins de aferição da cláusula de desempenho, com base na qual se definem partidos com acesso a recursos do fundo partidário (os repasses seguirão sendo feitos a cada partido político, uma vez que é a estes que a Constituição reconhece e ainda que os partidos conservem nome, sigla e número próprios, seu quadro de filiados, o dever de prestar contas e a responsabilidade por recolhimentos e sanções que lhe forem imputados). E cabe a direção nacional delimitar o papel de cada partido político integrante, de forma a assegurar isonomia e proporcionalidade quanto às tomadas de decisões durante o funcionamento parlamentar. 

As regras do processo eleitoral relacionadas à escolha e registro de candidatos, arrecadação e gastos de recursos em campanhas, propaganda eleitoral, contagem de votos, obtenção de cadeiras, prestação de contas de campanha e convocação de suplentes será de responsabilidade da federação e não dos partidos políticos que integrarem a federação. 

Aprovada por lei, pelo Congresso Nacional, com a sanção presidencial e definidas as regras pela Resolução do TSE, que implicações terão no processo eleitoral e como isso tem sido discutido especialmente nos partidos de esquerda? Na última reunião do diretório nacional do PT, no dia 16 de dezembro, o Grupo de Trabalho Eleitoral aprovou uma resolução para abrir negociação sobre a formação de uma federação partidária com PCdoB, PSB, PSOL e PV.

No entanto, não havia consenso em relação a isso: parte da direção do PT ainda resistia à idéia, mas foram convencidos da importância de uma federação com o objetivo de fortalecer a candidatura de Lula, que tem procurado ampliar sua base de apoio, não apenas visando à eleição, mas a formação e sustentação política do seu governo.  

Os muitos questionamentos dizem respeito às possíveis consequências de uma composição nacional, sem levar em conta os arranjos regionais. Como a federação de partidos terá abrangência nacional, isso significa afirmar que não será possível a constituição de federação de partidos no âmbito dos estados e municípios, o que pode ser um problema na formação das alianças políticas, ou seja, a questão é saber se o projeto político nacional irá se impor às alianças regionais e se isso provocará trocas de partido, em razão do alinhamento dos candidatos e suas articulações regionais.

Em relação aos demais partidos, a exceção do PV, que anunciou sua adesão no dia 21 de dezembro de 2021, ainda persistem dúvidas e receios em especial quanto à tendência à hegemonia petista.  

No PT, um dos que tem questionado publicamente a federação é o ex-deputado e ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu,  que embora defenda uma frente de esquerda, no artigo “Esquerda deve ter cautela na construção de federações” publicado no poder360 (https://www.poder360.com.br/opiniao/esquerda-deve-ter-cautela-na-construcao-de-federacoes-escreve-jose-dirceu) e considere que o momento histórico e a disputa político-eleitoral exigem unidade das esquerdas para derrotar Bolsonaro e a direita expressa na dupla Doria (PSDB)–Moro (Podemos),reconhece que não será fácil fazer uma federação para as eleições de 2022 “Ainda que haja vontade política e consciência da necessidade de união dentro dos partidos e entre os partidos de esquerda, mais concretamente PT, PSB e PCdoB, e mesmo com o Psol, Rede e PV”.

E entre seus questionamentos e de saber como serão decididos os candidatos aos cargos legislativos proporcionais e majoritários do Executivo e do Senado.  Da mesma forma, em relação às eleições municipais (de 2024 em diante), qual será o critério para decidir quem representará a federação em cada um dos 5.570 municípios, tanto no Executivo como na Câmara de Vereadores. 

Para ele, há um aspecto positivo de uma federação de partidos que é “a força da imagem e da mensagem de vários partidos federados, apoiando um só candidato que pode ser forte e suficiente para a vitória”. Mas, salienta que “se mal administrada e se os critérios de decisão não forem democráticos e proporcionais ao peso de cada partido, criaremos, na verdade, as condições para o fracasso não só da federação, mas dos governos eleitos”.

E se refere as experiências bem-sucedidas de Frentes Amplas em outros países (como Uruguai e Chile) que foram “arranjos históricos pela base ou acordos políticos pós-ditadura”, mas que no Brasil pode ser mais um casuísmo, ou seja, a aprovação como “uma solução para impedir o desaparecimento de partidos históricos, como o PCdoB, o PV e a Rede e mesmo o Psol pelo risco de não superarem a chamada cláusula de desempenho”. 

No momento, o que se tem em relação à federação de partidos  é a perspectiva de sua formação, mas se sabe de antemão que não será uma tarefa fácil, especialmente para a esquerda, onde a iniciativa enfrenta muitas resistências, como por exemplo, do PSB e seus condicionantes para aderir (disputas para os cargos eleitivos em alguns estados).

Outro aspecto importante é que o que tem sido discutido se circunscreve a cúpula dos partidos. Não há consulta aos filiados e daí a importância de ampliar a discussão e assim ter mais legitimidade nas decisões para a formação de uma federação.

Do ponto de vista dos partidos, a federação tem aspectos positivos, em especial para os de menor expressão eleitoral, pois permitirá que alcancem a chamada “cláusula de barreira”, criada em 2017 para extinguir legendas que não tenham um desempenho mínimo estabelecido por lei, assim como é positiva a permanência da união após a eleição, com um programa comum. 

No caso de partidos de esquerda, de fundamental importância para a ampliação do arco de alianças da candidatura de Lula à presidência,  não será ou não deverá ser uma mera coligação visando apenas às eleições, mas se constituir com um programa de governo e cujas decisões no  seu exercício (e dos mandatos dos integrantes da federação) sejam democráticas. Como disse José Dirceu  uma federação na qual os partidos que a compõem  “garantam o peso de cada partido em termos de voto e filiados, com órgãos proporcionais para a direção e real participação das bases em prévias e primárias e decisão sobre o programa”. 

Um dos aspectos importantes em relação as federações é que não resolvem o problema da fragmentação partidária (e o Brasil tem um dos sistemas partidários mais fragmentados do mundo).

Do ponto de vista do eleitor, o aspecto positivo é o de que com a união de partidos com identidades, programas  e objetivos comuns, em princípio, diminui as chances de se votar e eleger candidatos com os quais não se tenha qualquer afinidade política/ideológica, como tem ocorrido com as coligações partidárias em vigor, além da manutenção da federação durante toda a legislatura.

O grande desafio para a esquerda com a formação de uma federação de partidos será de conseguir se unir, com uma larga experiência de desunião e mais do que isso  se manter  em torno de um programa comum.