As relações de poder, a instabilidade política e o cristianismo hegemônico no Brasil

Esta semana a nossa coluna será diferente. Recebi um texto de um amigo, Emmanuel Paulino de Luna, historiador e doutorando em Ciências das Religiões, que me trouxe interessantes reflexões, por isso, aqui o replico para você, caro leitor. O faço porque o texto tem uma conexão com nossas colunas anteriores e certamente com as posteriores, ademais, porque o caro colega Emmanuel tem muito a contribuir com seus escritos por sua história de vida e por sua capacidade crítica. Aqui, deixo minha gratidão por ter aceitado o desafio de discutir política e religião comigo ao longo desses anos. Segue o texto:

O Brasil é um país multicultural, cuja complexa formação social abrange os povos originários, o afrodescendente (nascidos de pessoas escravizadas pelo branco colonizador) e os imigrantes oriundos dos focos migratórios (especialmente da Europa) de povos pobres que adentraram em nosso país em busca de oportunidade. Esse desenho social permitiu bases econômicas moldadas na estrutura fisiocrata de modelo agroexportador e industrialização tardia, além de bases religiosas e espirituais tão diversas quanto à imagem do povo brasileiro. Todavia, se dentro do cenário brasileiro as interações sociopolíticas dos grupos permitiram relações econômicas que imprimem as profundas desigualdades sociais no Brasil, na questão religiosa, em meio a tanta diversidade, não é diferente, pois a religião dos colonizadores, dos brancos, da classe dominante, possui uma clara hegemonia no espaço social e político.

O cristianismo historicamente “venceu” no Brasil, primeiro como religião oficial da Colônia e do Império, depois como religião demograficamente maior, não só em termos numéricos obviamente, mas em termos hegemônicos dentro dos espaços de poder da vida política e cultural, afinal, o Decreto 119-A, de 7 de Janeiro de 1890 da Velha República, estabeleceu a laicidade do Estado, porém esse processo se deu mais como uma estratégia pragmática para evitar o retorno imperial do que um arcabouço filosófico para dar suporte legal a todas as expressões religiosas fora da estrutura do Estado. Contudo a hegemonia cristã não conseguiu abafar as demais expressões religiosas que compõe o espaço social brasileiro, e estas, enquanto instituições e/ou como comunidades, almejam um dia ter voz na política e participar das decisões coletivas do país. É bem verdade que a liberdade de culto é uma garantia da constituição de 1988, essa por sua vez, inspirada na emenda 3.064 da constituinte de 1946, proposta pelo Deputado Federal Jorge Amado (PCB), porém, para além das bases legais, há uma prática culturalmente naturalizada de opressão que gera, sobretudo, intolerância, preconceito e mortes.

Quando analisamos rapidamente as decisões políticas das últimas décadas do Brasil, percebemos o quanto a religião está presente no cotidiano, incorporando interesses nem sempre espirituais, muito menos “republicanos”. Como exemplo basta pensarmos em dois casos da nossa recente história. Primeiro o Golpe-Civil-Militar de 1964, quando a classe média junto a grande parte da Igreja Católica (e demais denominações cristãs) somaram apoio às forças armadas e empresários para marchar em nome de “Deus e da Família” com o objetivo de derrubar João Goulart, presidente legalmente eleito que na vésperas do golpe projetava reformas de base que podiam abalar as estruturas do “baronato brasileiro”. Segundo, ainda bem presente na memória do país, o Impeachment de Dilma Vana Rousseff  (PT),  primeira presidenta do Brasil, que perdeu seu mandato em 2016 com o pressuposto de ter realizado pedaladas fiscais. Na votação da Câmara dos Deputados, segundo o site UOL, entre os discursos de defesa do impeachment a palavra “Deus” foi citada 59 vezes e “família” 136 vezes. Ou seja, Deus e a família estão intensamente presentes nas decisões da vida política brasileira! Mas que Deus? Que Família? Vamos refletir…

Nos escritos dos Atos dos Apóstolos da Bíblia, livro sagrado para os cristãos, narra-se a passagem do Apóstolo Paulo por Atenas, cidade-estado que cultuava vários deuses com seus respectivos altares e objetos de adoração. Segundo a bíblia, Paulo observou um dos altares onde estava escrito: “Ao deus desconhecido” (Atos 17:23). Não havia ali imagem ou objeto de culto semelhante aos demais deuses da polis[1], logo ele pregou que esse “Deus” era o ser criador de todas as coisas; “O Deus que fez o mundo e todas as coisas nele, ele, sendo o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos com as mãos” (Atos 17:24). Um deus invisível dentro da polis, esse era o “Agnostos Theos”, que embora não pudesse ter imagem, nem habitar nos templos, era dotado de poder inigualável segundo a pregação apostólica.

Nos Brasil do século XXI temos dezenas de deuses, religiões e espiritualidades, porém há um só deus que habita na polis, na vida política, nas tramas obscuras da república. Ele pode não ter uma forma/imagem clara, mas está encrustado desde a mais simples câmara municipal ao palácio do planalto.  Ele oprime o “diferente” e o rechaça, afinal como bem dizem os poetas Caetano Veloso e Gilberto Gil “narciso acha feio o que não é espelho”. Não se pode afirmar que esse deus é o mesmo do Jesus bíblico que ensinou a amar o próximo como a si mesmo, inclusive os inimigos, mas sabemos que ele é o deus dos “vencedores”, o deus dos golpistas, o deus do poder e dos poderosos.

Retornando à última “instabilidade” política, chamado abertamente pela presidenta e por centenas de pensadores, historiadores, sociólogos e juristas de ‘golpe”, tem-se que destacar um  registro peculiar de sua aprovação pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB) que foi a frase “Que Deus tenha misericórdia desta Nação, voto sim”. Portanto, o referido processo se deu em nome de um deus, de um modelo de família e  de um Brasil excludente, tendo consequências devastadoras que evidenciaram uma nação claramente dividida, fruto de feridas nunca fechadas. Ao se consumar tal fato, a presidenta eleita foi implacável ao afirmar que:

“O golpe é contra o povo e contra a Nação. O golpe é misógino. O golpe é homofóbico. O golpe é racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito, da violência. O golpe é contra os movimentos sociais e sindicais e contra os que lutam por direitos em todas as suas acepções: direito ao trabalho e à proteção de leis trabalhistas; direito a uma aposentadoria justa; direito à moradia e à terra; direito à educação, à saúde e à cultura; direito aos jovens de protagonizarem sua história; direitos dos negros, dos indígenas, da população LGBT, das mulheres; direito de se manifestar sem ser reprimido” (Dilma Rousseff, 2016)

Esta fala é um marco dentro da história política brasileira, pois resume bem o auge da dinâmica nas relações de poder que se encontram hoje em nosso país: o neoliberalismo exacerbado em meio a uma pandemia voraz e um pseudo-nacionalismo estruturado em um conservadorismo religioso com um sentimento extremista, provando que as aspirações da antiga Ação Integralista Brasileira ainda possuem raízes e que a serpente do fascismo nunca deixou de rastejar e pôr ovos nas terras tupiniquins. Contudo, quem acredita na liberdade de toda forma de ser, de amar, de crer (e não crer) é obstinado e obstinada por excelência! Como diria Eduardo Galeano (1994), devemos caminhar para o horizonte utópico mesmo sabendo que cada passo dado nos coloca mais distante do mesmo,  porém o horizonte é como um sol que reverbera em nossos olhos e ilumina nossa estrada para que não esqueçamos e nem desistamos de caminhar. E pra encerrar, que fiquemos com a reflexão de Simone de Beauvoir: “Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre”.

Referências:

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sergio Milliet. 4 ed. Paris: Difusão européia do livro, 1970.

FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Memoria: Dilma fez discurso emocionante em despedida do Alvorada. 2020. Disponível https://fpabramo.org.br/2020/08/31/dilma-fez-discurso-emocionante-em-despedida-do-alvorada/ Acesso em 06 de Fevereiro de 2021.

GALEANO, Eduardo. As palavras andantes‎. 4.ed. Trad. Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 1994. p. 310.

UOL. Deputados citaram “Deus” 59 vezes na votação do impeachment. 2016. Disponível em <https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/deputados-citaram-%E2%80%9Cdeus%E2%80%9D-59-vezes-na-votacao-do-impeachment/> Acesso em 06 de Fevereiro de 2021.

[1] Modelo das antigas cidades gregas. Os Gregos viviam nas polis, e estavam somente sujeitos às suas leis, o que para eles era decisivo para os distinguir dos povos bárbaros.