Contra a ignorância, em defesa do iluminismo
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Editora Objetiva, 2001) o iluminismo é definido como um movimento intelectual do século XVIII caracterizado pela centralidade da ciência e da racionalidade crítica no questionamento filosófico, o que implica recusa a todas as formas de dogmatismo, especialmente das doutrinas políticas e religiosas tradicionais (p.1572).
Entre seus principais pensadores podemos citar Montesquieu, David Hume, Nicolas de Condorcet, Denis Diderot, Jean le Rond d’Alembert (dois criadores da Enciclopédia Francesa no século XVIII) e Jean-Jacques Rousseau. Em suas obras, entre outros aspectos, denunciaram as carnificinas cometidas em nome de Deus, como as cruzadas, às guerras religiosas, à inquisição, caça às bruxas etc., da mesma forma, defenderam a libertação dos homens e mulheres da ignorância e da superstição contra todas as formas de intolerância, em defesa da fraternidade, do progresso, de governos legítimos, um Estado laico tendo como um dos fundamentos a separação entre igreja e Estado. Enfim, o uso da razão contra os grilhões das crenças e preconceitos.
O livro O Novo Iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo (Editora
Companhia das Letras, 2018, tradução de Laura Teixeira Motta e Pedro Maia Soares) de
Steven Pinker, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Harvard, retoma a discussão do iluminismo em um momento histórico no qual os seus ideais estão sob ataques, com o anti-intelectualismo, anticientificismo e todos os retrocessos em curso.
O livro é, a meu ver, uma importante contribuição em defesa da ciência, da razão e do projeto iluminista. É dividido em três partes: Iluminismo, Progresso e Razão e Razão, Ciência e Humanismo, situando-os historicamente compreendendo o iluminismo, como produto da razão humana e cujos ideais são atemporais, mas, hoje, estão ameaçados pela ignorância, por governos obscurantistas por isso nunca foi tão relevante quanto agora e indaga: “Quem poderia ser contra a razão, a ciência, o humanismo ou o progresso? São palavras doces, expressam ideais inatacáveis. Definem as missões de todas as instituições da modernidade: escolas, hospitais, entidades beneficentes, agências de notícias, governos democráticos, organizações internacionais. Esses ideais precisam mesmo de defesa?”
E responde: “Com certeza. Desde os anos 1960, a confiança nas instituições da modernidade despencou, e a segunda década do século XXI viu a ascensão de movimentos populistas que repudiam com estardalhaço os ideais do Iluminismo”. E mais ainda: esses ideais precisam de defesa porque, como ele diz, vivemos o perigo de um eclipse do conhecimento e assim a importância de evitar que a expansão da ignorância não possa se transformar em um retorno à Idade das Trevas. Para ele “Se existiu algo que os pensadores do Iluminismo tiveram em comum foi à exigência de que se aplicasse vigorosamente o critério da razão para entender o mundo,
em vez de recorrer a geradores de ilusão como a fé, o dogma, a revelação, a autoridade, o carisma, o misticismo, o profetismo, as visões, as intuições ou a análise interpretativa de textos sagrados”.
É justamente esse um dos grandes desafios para os que lutam contra o obscurantismo e os retrocessos hoje, especialmente no campo da ciência. Como salienta Pinker “os métodos da ciência, o debate aberto e verificação empírica são um paradigma de como alcançar o conhecimento confiável” instrumento essencial para combater a ignorância e a estupidez.
A crença iluminista, como ele salienta, foi uma combinação de razão e humanismo e cita
como um dos mais famosos produtos do Iluminismo, a Declaração de Independência dos Estados
Unidos, no qual os governos são instituídos pelo povo para assegurar o direito à vida, à
liberdade e à busca da felicidade “e derivam seus poderes do consentimento dos governados” e não para defender privilégios, preconceitos, ódios, e intolerância. A pergunta é: Por que milhões de pessoas apoiaram (e continuam apoiando) pessoas e governos que atentam contra as conquistas do iluminismo? Pinker salienta que os seres humanos são vulneráveis a ilusões e falácias e que “nossos cérebros são limitados em sua capacidade de processar informações e evoluíram num mundo sem ciência e outras formas de checagem de fatos”. E que o desafio de hoje é projetar um ambiente informativo em que razão, o conhecimento possa prevalecer sobre aquelas que nos levam para a insensatez e a irracionalidade.
Para o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor entre outros livros, de Sapiens – uma breve história da humanidade (Editora L&PM, 2012) e Homo Deus – uma breve história do amanhã (Editora Companhia das Letras, 2016), em entrevista à revista Veja (13 de setembro de 2019) afirma que a ciência encontra-se hoje sob ataque por diversas razões: “Primeiro, porque as pessoas menosprezam as enormes conquistas que ela trouxe. E um segundo fator é que os líderes populistas estão em alta, e eles são inimigos contumazes da ciência porque ela expõe verdades que vão contra seus comandos”.
Em relação ao Brasil, os exemplos são muitos. Não apenas a democracia, o meio ambiente, a educação, saúde, cultura etc., estão sob ataque, como a ciência e entre muitos exemplos está o corte anunciado no início de outubro de 2021 de 92% das verbas para a ciência feita pelo Ministério da Economia com implicações para pesquisas em todas as áreas. Dos R$ 635 milhões previstos para a ciência, o governo garantiu apenas R$ 55 milhões, que serão geridos pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Originalmente, esses recursos seriam destinados a bolsas de apoio à pesquisa e a projetos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Um dos representantes das trevas do atual governo foi o chanceler Ernesto Araújo, já substituído, mas cujo “espírito” ainda permanece (seu substituto, integrante da comissão que foi com o presidente para o encontro da ONU foi flagrado fazendo o gesto da arminha com as mãos, usada como um dos símbolos pelo seu mito na campanha eleitoral de 2018. O gesto, como o do ministro da saúde, foi para pessoas que protestaram contra a presença deles em Nova Iorque).
É desse ex-chanceler a ideia da presença do chamou (equivocadamente) de um marxismo cultural e que tinha se infiltrado nas instituições… É o mesmo que em uma palestra em Washington quando ainda exercia o cargo (mais por adesão ao seu chefe do que pela competência para assumir o cargo) alegou que as relações entre aquecimento global e ação humana estavam erradas – sem apresentar nenhuma evidência – e ainda chamou de “climatismo” a reação internacional aos incêndios na Amazônia, contra todas as evidências científicas.
Em meio a tantos retrocessos, não por acaso, cresce o obscurantismo, a pseudociência e um dos (muitos) exemplos foi à realização de uma convenção nacional de terraplanistas ocorrida no dia 10 de novembro de 2019 em São Paulo. E pior: não estavam sozinhos. Segundo uma pesquisa do Datafolha publicada pouco antes, 11 milhões de brasileiros acreditam que a Terra é plana. Há, em função do analfabetismo científico, um ambiente propício para difusão dessas (equivocadas) concepções.
Em relação ao terraplanismo, uma matéria publicada no Jornal O Estado de São Paulo no dia 21 de setembro de 2019 por Carlos M. Sánchez, é citado o professor Roberto Dias da Costa do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo que afirma que “esse fervor terraplanista” não passa de uma moda sustentada por argumentos infantis. Para ele se trata de um tema “não para ser estudado por astrônomos e sim por psicólogos e sociólogos, no sentido de que as pessoas gostam de pertencer a grupos, comunidades, irmandades que dominam segredos ocultos”.
Mas o problema é que o avanço do obscurantismo não é específico de países subdesenvolvidos, a ignorância também se faz presente no mundo desenvolvido. Entre muitos exemplos basta ver como nos Estados Unidos milhões questionam a eficácia das vacinas, como no Brasil dos negacionistas, e tomam remédios ineficazes contra a covid 19, enriquecendo aproveitadores. Pinker dá como exemplo de retrocessos e avanço da ignorância os Estados Unidos sob Donald Trump (2016-2020) no qual os ideais de tolerância, igualdade e direitos iguais sofreram grandes golpes não apenas na campanha eleitoral como no governo dele. Entre outros aspectos, na
campanha, para agradar determinados tipos de eleitores, passou a demonizar os imigrantes hispânicos; no governo ainda tentou proibir completamente a imigração muçulmana (não conseguiu), além de menosprezar “seguidas vezes” as mulheres, de ter tolerado “expressões vulgares de racismo e sexismo em seus comícios, aceitou o apoio de grupos supremacistas brancos e os equiparou a seus oponentes, e nomeou um estrategista e um procurador-geral que são hostis ao movimento dos direitos civis”.
A pergunta é por que uma estupidez como essa, que despreza a lógica, o bom senso e as conquistas comprovadas da ciência, como as vacinas, ganha tanta adesão? Nem de longe essa ignorância (sobre terra plana, contra as vacinas etc.,) pode ser considerada como ceticismo, que é uma posição filosófica, embasada em raciocínios lógicos, em método científico desenvolvido ao longo dos séculos, como mostra Carl Sagan no maravilhoso livro O mundo assombrado pelos demônios- a ciência vista como uma vela no escuro (Editora Companhia das Letras, 1996).
Os descrentes na ciência, como é o caso, não se baseiam em um método, ou raciocínio lógico, mas em preconceitos, crenças e nesse sentido quando nos referimos à idade das trevas é para indicar o momento histórico em que o papel da igreja católica era muito grande, que perseguiu, julgou, condenou e queimou em fogueiras milhares de pessoas acusadas de se desviarem de seus dogmas.
Entre muitos exemplos dos perigos da ignorância e intolerância pode ser citado o caso de Galileu Galilei (1564-1642), que em 1633 foi condenado por heresia por tentar provar a teoria heliocêntrica (aceita pela igreja séculos depois). No entanto, para não ser jogado na fogueira, como muitos outros, diante do Santo Ofício ele foi obrigado a negar suas convicções (pelo menos publicamente porque no fundo sabia que estava certo, como ficou comprovado pela ciência).
E esta é uma questão de maior relevância: quando crenças religiosas pautam ou pretendem pautar a condução da sociedade e da política, em particular, como ocorre hoje no Brasil, quando o presidente quer colocar na mais alta corte jurídica do país, o Supremo Tribunal Federal não alguém que tenha qualificação inquestionável para isso, mas por ser “terrivelmente evangélico” e mais ainda, pautar muito de suas condutas (e discursos) por influência de determinados líderes evangélicos, para manter seu apoio.
Em relação à propagação de teses obscurantistas (se é que se pode chamar de ideias teses em defesa da terra plana), o que podemos constatar é que se faz hoje, através do uso de tecnologias que deveria contribuir para democratizar e acelerar a divulgação do conhecimento, mas que virou também veículo de propagação de ideias obscuras (e tem quem se aproveite disso: os que surfam a onda da ignorância para se beneficiar).
Para Carl Sagan, as conseqüências do analfabetismo científico podem ser muito perigosas “muito mais perigosa em nossa época do que em qualquer outro período anterior”. E continua “É perigoso e temerário que o cidadão médio continue a ignorar o aquecimento global, por exemplo, ou a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo, o desflorestamento tropical e o crescimento exponencial da população” (p.21).
O diagnóstico dos tempos presente é que “o bombardeio das sombras sobre as luzes” se intensificou pelo crescimento do obscurantismo, de teorias conspiratórias, a difusão e uso político de fake news (que não é um fenômeno recente, mas seu uso sistemático e mais sofisticado potencializado por meio da web e particularmente nas redes sociais tem cada vez mais ameaçado a democracia), ou seja, as manipulações, os ataques e mentiras contra adversários etc. “que se orientam pelas trevas”.
Curiosamente, a necessária defesa do iluminismo e a discussão sobre um possível retorno a uma “nova idade das trevas” ocorre quando há enormes avanços na ciência em todas as áreas, em um contexto no qual o surgimento e expansão da internet trazia a promessa (não cumprida) de democratização do conhecimento, e o que vemos é o avanço da ignorância, da insanidade, os ataques à ciência que significam um retrocesso em relação aos ideais iluministas, daí a importância da resistência, em defesa da ciência, da democracia, contra todas as formas de retrocessos que atentem contra elas pois, como diz Harari, se trata de um ataque não apenas à ciência e à razão, mas a outras conquistas da civilização ocidental como a democracia, a tolerância, o humanismo.