Infocracia, democracia e eleições
Em 2021 foi publicado na Alemanha o livro do filósofo e ensaísta sul-coreano (radicado na Alemanha) Byung-Chul Han “Infokratie – Digitalisierurg die Krise der Democratie” (Editora Matthes & Seitz Berlin Verlag, Berlin), traduzido e publicado no Brasil em 2022 pela editora Vozes(tradução de Gabriel S. Philipson) com o título Infocracia , Digitalização e crise da democracia. Como os demais livros dele publicados no Brasil são curtos, mas densos, profundos, como entre outros: A sociedade do cansaço; Sociedade paliativa: a dor hoje; Favor fechar os olhos: em busca de um outro tempo; Agonia do Eros; Não coisas: reviravoltas do mundo da vida; Psicopolítica; No enxame: perspectiva do digital; sociedade da transparência; Filosofia do zen-budismo; Topologia da violência; A salvação do belo; Hiperculturalidade: Cultura e globalização.
No “Infocracia – Digitalização e a crise da democracia”, Infocracia é um dos seis capítulos do livros(os capítulos são: Regime de informação, Infocracia, o fim da Ação Comunicativa, Racionalidade digital e a Crise da verdade). Trata-se de uma análise das sociedades atuais que permite, entre outros aspectos, pensar o inexorável avanço da digitalização, seus impactos nas sociedades democráticas, em especial nos processos eleitorais, em um contexto mais geral de crise da democracia, que é indissociável do avanço da extrema direita e do domínio que elas tem das redes sociais, que contribuem para seu processo de degradação, da democracia para a infocracia.
Como ele diz, o tsunami da desinformação está se apoderando da esfera política, com manipulações, fake news e assim com as inevitáveis distorções no processo democrático (que antecede e vai além das eleições, como se tem constatado no Brasil e outros países, como na índia, Estados Unidos etc., e nesse caso, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, possibilitou a vitória de candidatos de extrema direita, eleitos com base em mentiras e manipulações de segmentos expressivos da opinião pública e depois, esses mesmos candidatos a ditadores, foram derrotados eleitoralmente (mas mantêm uma expressiva base de apoio, dentro e fora dos respectivos Congressos Nacionais).
Segundo Han, a democracia estaria degenerando em Infocracia e que um dos principais responsáveis pela crise da democracia é justamente o domínio da informação. cujo objetivo é, em nome de uma pretensa defesa da democracia, contribuir para sua crise e degradação. Infocracia, para ele é uma sociedade na qual se exerce o poder por meio do uso que se faz da informação como meio de dominação e expressa o fato de que o poder do povo, a democracia, está sendo suplantado pelo poder da informação como paradigma da convivência social, um sistema regulador das relações sociais, num cenário no qual as sociedades são submetidas a um verdadeiro tsunami informativo, uma avalanche de informações e desinformações (às vezes difícil de distinguir) gerada pela internet.
Se nos primeiros tempos da democracia, o livro era o meio dominante, que instaurou o discurso racional do que ficou conhecido como Ilustração, hoje não é mais: vivemos hoje em uma sociedade na qual, mesmo sem que as pessoas percebam, elas são controladas e dominadas e o “consumo” da informação interfere na capacidade cognitiva e bloqueia o que seria indispensável em uma sociedade democrática: a capacidade de compreender. Para ele, a crise atual da Ação Comunicativa “pode ser atribuída ao metanível de que o outro está desaparecendo” e nesse sentido, a desaparição do outro significa o fim do discurso: “a expulsão do outro reforça a coação da autopropaganda de doutrinar a si mesmo com suas próprias idéias. Essa autodoutrinação produz infobolhas autistas que dificultam a ação comunicativa. Aumentando a coação à autopropaganda, espaços discursivos ficam cada vez mais recalcados por câmeras de eco, nas quais escuto sobretudo a mim mesmo falar”.
O livro O filtro invisível – o que a internet está escondendo de você de Eli Pariser, (publicado nos Estados Unidos em 2011 e no Brasil em 2012 com tradução de Diego Alafro, Editora Zahar), é citado por Han, no qual, como o autor, questiona o fato de que a internet, presumivelmente seria uma espécie de uma enorme biblioteca livre, no qual se acreditava que empresas e sites como Google e Facebook, por exemplo, serviriam de guias, quando na realidade essas e outras grandes empresas “personalizam” os serviços que prestam, baseadas em históricos de navegação (fornecidos espontaneamente pelas pessoas), e são filtradas e usados para outros fins, políticos, econômicos etc., e uma de suas características é usar filtros que prendem os usuários em bolhas individuais, difícil de escapar e nesse sentido a promessa de ser “um campo livre de diálogo” e conhecimento, não é. Ao contrário.
A formação de infobolhas é uma das características de como a extrema direita sabem fazer um uso eficaz e no Brasil os processos eleitorais em 2018 e 2022 evidenciaram isso: o uso da desinformação para mentir, manipular e quem está dentro dessas infobolhas, não acessa outro tipo de informação e passam a acreditar em todas as mentiras (uma mentira que circulou nas eleições de 2022, entre muitas mentiras, foi a de Lula iria fechar as igrejas evangélicas. Uma mentira e uma estupidez, porque um presidente não pode simplesmente fechar igrejas, nem Lula fez ou fará isso, mas serviu para amedrontar pessoas ingênuas que considerou como verdade) e como diz Han, são pessoas que não tem capacidade discursiva e aderem as bolhas porque não tem capacidade de reflexão própria e aderindo, eles criam uma identidade. O que está por trás e o que explica, por exemplo, o incitamento e da presença de milhares de pessoas em frente aos quartéis do exército pedindo intervenção federal por não aceitarem os resultados eleitorais, sendo que ficou mais do que comprovado a lisura do processo (urnas eletrônicas etc.) e mais ainda: quando essas mesmas podem ser vítimas de uma ditadura que defendem?
Uma das reflexões de Han é sobre a psicopolítica, como técnica de dominação que recorre a um poder sedutor, que domina sem que as pessoas percebam que são dominadas. Se pensa livre quando na realidade não é e mais ainda: esse sistema que explora sua liberdade se apropria dos dados que elas mesmas, em suas bolhas ou fora dela, lhes entregam voluntariamente e são usados contra eles.
Um aspecto ressaltado por ele sobre o que qualifica como regime de informação (um dos capítulos do livro) que ele é uma forma de domínio em que a informação e seu processamento mediante algoritmos e inteligência artificial determina de modo decisivo os processos sociais, econômicos e políticos no capitalismo da informação, baseado na comunicação e criação de redes. Não se trata mais do regime da disciplina, analisada por Michel Foucault em Vigiar e Punir no qual formula o conceito de sociedade disciplinar, analisando uma série de mecanismos de controle social desenvolvidos a partir do século XVIII no qual se explora corpos e energia (Vigiar e punir: o nascimento da prisão Petrópolis: Vozes, 2014) mas o que Han salienta é uma nova forma de dominação no capitalismo, o capitalismo da informação, em que as pessoas não se sentem vigiadas e é justamente essa sensação de liberdade que assegura a dominação. Hoje o fundamento dos detentores do poder não está mais ligada tão somente à posse dos meios de produção, mas ao acesso à informação, que é utilizada para a vigilância psicopolítica e a previsão do comportamento individual. Como mostra Shoshana Zuboff no livro A era do capitalismo da vigilância – a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder, traduzido por George Schlesinger, Editora Intrínseca, 2020), quanto mais dados geramos sobre nós mesmos e disponibilizados espontaneamente, mais eficaz será a vigilância (os celulares também se tornam um instrumento importante de vigilância (localização, deslocamento, comunicação, etc.), essencialmente podemos afirmar que a tecnologia da informação digital faz da comunicação um meio de vigilância, de controle e prognóstico do comportamento das pessoas.
Há outros livros publicados no Brasil que ajudam a compreender esse processo como A sociedade de controle: manipulação e modulação nas redes digitais (Joyce Souza Rodolfo Avelino e Sergio Amadeu da Silveira (editora Hedra, 2018), Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia, de Cathy O’Neil, traduzido por Rafael Abraham, editora Rua do Sabão, 2020) e Sociedade vigiada, organizado por Ladislau Dowbor (Autonomia Literária e Outras palavras, 2020).
Ao analisar esse processo, especialmente em relação à democracia e eleições, se constata a quase inexistência de um debate racional nas campanhas eleitorais, em particular em eleições presidenciais, o qual no debate entre candidatos o que vale não é o conteúdo, mas a performance oratória e assim o discurso degenera em espetáculo e publicidade – com destaque ao papel dos marqueteiros – e desta forma os conteúdos políticos, que deveriam balizar os debates, tem cada vez menos importância. Han se refere ao que chama de telecracia que “degradava as campanhas eleitorais a ponto de transformá-las em guerras de encenações midiática. O discurso foi substituído por show para o público”. Destaca-se também nesse processo, o papel dos meios de comunicação eletrônica e das redes sociais que contribuem para a destruição do discurso racional (um exemplo significativo de irracionalidade foi – e tem sido – entre outros exemplos, o negacionismo não apenas climático, a ciência, teorias conspiratórias lunáticas, mas em relação às vacinas e toda estupidez que foi dita e defendida, inclusive e principalmente pelo presidente da República, nas redes sociais etc, indicando medicamentos como cloroquina e Invermectrina sem qualquer eficácia para Covid, em vez de vacina porque trouxe como consequência a morte de mais de 700 mil pessoas, e mais de 30 milhões de infectados que poderiam ter sido evitados.
A reflexão de Han é que a democracia em tempo real que poderia ser possível com o avanço tecnológico e a digitalização no qual a representação “que cria distância” seria substituída pela participação imediata, ou seja, uma democracia em tempo real digital que “faz do smartphone um parlamento móvel, promovendo debates dia e noite em qualquer lugar” (p.48).
No entanto, como ele diz, a democracia em tempo real não existe, é uma completa ilusão. A comunicação dirigida pelos algoritmos não é nem livre nem democrática. Enxames digitais não formam um coletivo responsável, que age politicamente e afirma que os novos súditos das mídias sociais “deixam-se adestrar em gado de consumo”, ou “zumbis de consumo” e assim a comunicação digital em vez de levar a uma maior participação e politização da sociedade, provoca o que ele chama de “reversão do fluxo de informação” que tem efeitos destrutivos para o processo democrático e destaca o nefasto papel de influenciadores, despolitizados e muitas vezes a serviço da barbárie e não da civilização e muito menos da democracia.
Para Han, o grande feito da infocracia é ter induzido em seus consumidores/produtores uma falsa percepção de liberdade. O paradoxo é que “as pessoas estão presas à informação. Elas mesmo se colocam grilhões ao comunicar e produzir informações”.
Uma das contribuições importantes dele no conjunto de suas obras é quanto a crise da democracia e o que ele chama de crise da verdade. Para ele, só valoriza a verdade quem compartilha uma base comum a partir da qual o diálogo seria possível. Mas, como dialogar e “ter um solo comum” com intolerantes, ignorantes, que não saem de suas bolhas, submetidas ao império das Fake News (notícias falsas) que é um dos itens do universo da desinformação e usados à profusão, em particular em eleições, pelos agentes da infocracia, para manipular, mentir, conquistar corações e mentes especialmente entre os que habitam as bolhas? Nesse sentido, como seria possível restaurar o ideal de uma vida em comunidade, aberta ao outro, sem mentiras e manipulações de toda ordem?
Ao analisar a crise da democracia, mostra como as eleições e os processos decisórios são manipulados, em especial pela extrema direita, que soube (e sabe) usar com eficácia uma verdadeira máquina de mentiras. Quando nos referimos às eleições, é preciso ter claro de que há diferenças significativas entre democracia e infocracia, de um lado, o respeito do direito ao voto livre e secreto, e por outro, na infocracia, relacionada ao processo de persuasão psicológica a que estão submetidos os eleitores em suas bolhas e como ocorre com governos de extrema direita, eleitos com base em mentiras e formação de infobolhas não possibilita qualquer participação efetiva nos processos de tomada de decisões. Seus eleitores servem apenas para votar e dar “legitimidade” aos eleitos (alguns até considerados como “mitos”), que passam a atuar em seu nome e mesmo com as deturpações da própria democracia, dizendo defendê-la, quando na realidade contribuem para sua erosão.
As eleições presidenciais no Brasil em 2018, com a vitória do candidato da extrema direita, foram consideradas “livres e democráticas”, mas sabe-se que o resultado foi influenciado por uma máquina de mentiras, de estratégia de indução de opiniões contra um partido (PT) e seu candidato (como o chamado Kit Gay e outras mentiras). Nesse sentido, podemos afirmar, com Han, que a democracia foi substituída pela infocracia. No entanto, nas eleições de 2022, a extrema direita, usando os mesmos artifícios e ainda toda a estrutura do poder (liberação de verbas, pacote de “bondades” eleitoreiras etc.) não se reelegeu e criamos assim, esperemos, as condições para o retorno da democracia no país e que se amplie o debate sobre não apenas a democracia como também sobre a Infocracia e seus impactos na sociedade.