Pobreza, miséria e neoliberalismo
Loic Wacquant, no livro Punir os pobres – a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (Editora Revan, 2003), analisa o desenvolvimento do capitalismo e o neoliberalismo como parte integrante desse processo, e mostra como ele gera mais desemprego do que emprego, e que existe um processo a criminalização da pobreza, e mais do que isso, uma gestão neoliberal da pobreza (o livro está disponível em aqui.
O geógrafo britânico David Harvey autor do livro Uma Breve História do Neoliberalismo, que o qualifica como novo modo de dominação capitalista, em uma entrevista publicada no site da revista eletrônica Jacobin afirma que o neoliberalismo é um projeto político lançado pela classe capitalista quando ela se sentiu muito ameaçada, política e economicamente e que eles “queriam desesperadamente apresentar um projeto político que reduzisse a força da classe operária” e que um dos aspectos mais nefastos é o que se chama de autodominação pessoal e social, quando as vítimas passam a se culpar por algo cuja responsabilidade não são deles, e sim vítimas de um processo de despolitização, que serve aos interesses do neoliberalismo e seus ideólogos. Não percebem as causas que geraram as desigualdades e a pobreza, as distintas forma de exploração, como se a miséria e a pobreza fossem escolhas pessoais.
Com a ruína dos sistemas públicos de proteção social, da destruição do público como estrutura de proteção, desemprego, pobreza e fome, suas vítimas no geral não tem consciência da origem das desigualdades e nesse sentido, é possível destacar o papel dos meios de comunicação. Como se sabe, não há neutralidade e, como integrante do sistema dominante, grande parte está a serviço da ideologia neoliberal com seus discursos para legitimar as desigualdades, desqualificar os serviços públicos como ineficientes, visando sua privatização (manipulação e desinformação que provocam a desconfiança nos sistemas públicos), mas usando o Estado e seus recursos, quando lhes convém.
E como isso se expressa no Brasil de hoje? Com o crescimento da pobreza e da miséria. Uma matéria publicada no portal G1 por Deslange Paiva no dia 24 de maio de 2022 mostra o aumento da quantidade de famílias em situação de extrema pobreza na cidade de São Paulo (que não deve ser muito diferente da maioria das capitais do país). O que significa? Como classificar a extrema pobreza? Segundo o Banco Mundial, considera-se nesta faixa quem tem renda diária per capita de US$ 1,90, ou cerca de R$ 274,50 mensais, enquanto que o CadÚnico classifica como famílias com renda per capita mensal de até R$ 105. Quem se enquadrar no conceito definido pelo governo passa a ter direito a receber benefícios sociais, como o Auxilio Brasil (com o pagamento de R$ 400 para famílias em extrema pobreza).
Em 2019, eram os com renda per capita mensal de até R$ 85. Em 2020 e 2021, passou para até R$ 89. Em 2020 o país teve o maior nível de desigualdade nas metrópoles brasileiras desde 2012 conforme dados apresentados no Boletim – Desigualdade nas Metrópoles, resultado de uma pesquisa desenvolvida pela PUCRS, Observatório das Metrópoles e pelo Observatório de Dívida Social na América Latina. O levantamento utiliza dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc), doIBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Em 2021, Brasil começou o ano com mais miseráveis que há uma década e com fim do Auxílio Emergencial, e com um total de pobres superando os de 2019. Dados de uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas relativos a fevereiro de 2021 mostram que o número de brasileiros que viviam na pobreza quase triplicou em seis meses. O número de pobres passou de 9,5 milhões em agosto de 2020 para mais de 27 milhões em fevereiro de 2021. Uma matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo por Fernando Canzian no dia 30 de janeiro de 2021 afirma que “Com o fim do auxílio emergencial em dezembro, 2021 começou com um salto na taxa de pobreza extrema no Brasil (…). O país tem hoje mais pessoas na miséria do que antes da pandemia e em relação ao começo da década passada, em 2011. Neste janeiro, 12,8% dos brasileiros passaram a viver com menos de R$ 246 ao mês (R$ 8,20 ao dia), linha de pobreza extrema calculada pela FGV Social a partir de dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (Pnads) Contínua e Covid-19. No total, segundo projeção da FGV Social, quase 27 milhões de pessoas estão nessa condição neste começo de ano”.
É inegável que a pandemia teve um efeito negativo na renda dos mais pobres, as maiores vítimas do atraso no planejamento da vacinação, e que resultou no aumento não apenas de infectados e mortos, como na taxa de pobreza, assim como houve um aumento de desemprego, da inflação etc., que atingiu especialmente os mais vulneráveis.
Em relação a 2022, um levantamento publicado no G1 a partir de dados coletados do Cadastro Único (CadÚnico) da cidade de São Paulo mostra que houve um crescimento da pobreza e miséria. Segundo a matéria, antes do início da pandemia, em janeiro de 2019 e janeiro de 2020, eram 412.337 famílias na situação de extrema pobreza, e um ano depois, em janeiro de 2020, subiu para 450.351, um aumento de 9,21%. Em janeiro de 2021, eram 473.814 famílias e até abril de 2022, passou para 619.869 famílias, um aumento de 30,82%.
A matéria salienta ainda que para especialistas como o economista Marcelo Neri, diretor da Fundação Getulio Vargas, os números do CadÚnico não mostram os reais dados de extrema pobreza nos municípios, que pode ser ainda maior porque muitas pessoas estão fora do cadastro. E tem ainda o impacto da inflação: em 2022, segundo dados da matéria, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, que mede a inflação oficial acumula alta de 4,29%. Do início da pandemia, em março de 2020, até abril de 2022 a inflação acumulada era de 19,42% (em 2020, a inflação para as famílias com renda entre 1 e 2,5 salários mínimos foi de 6,3%, enquanto os preços dos alimentos aumentaram 15,4%, em média, porque houve produtos que aumentaram muito mais.
Um aspecto importante é que , como se sabe, houve uma migração do Programa Bolsa Família, para o Auxilio Brasil (antes era o Auxílio Emergencial) e, se por um lado houve um aumento do valor do benefício, diminuiu o número de beneficiados.
Em relação a dados sobre o crescimento da pobreza e da miséria no Brasil em 2022, um estudo realizado pela Tendência Consultorias e MB Associados e divulgado em abril, revelou que mais da metade da população está nas classes D e E, com no máximo R$ 2,9 mil de renda domiciliar e as perspectivas, sem a retomada de crescimento econômico, com inflação maior, sem aumentos salariais etc., só tende a piorar e a favorecer uma minoria de privilegiados, que não chega a 3% da população. O fato é que os dados atuais e as perspectivas apontam a continuidade da perda do poder de compra da população e assim, o aumento da pobreza e da miséria.
Este segmento da população, de excluídos, por razões óbvias, é diretamente afetado pela ausência de políticas e programas sociais. Em relação aos gastos com o que foi chamada de itens essenciais, como a alimentação, segundo a pesquisa “quando calculado o quanto os itens essenciais pesaram no bolso das famílias, ficou claro o impacto da desigualdade. Enquanto os mais ricos utilizavam 48,6% dos ganhos para os itens essenciais, a classe média alta utilizava 61,5%, a classe média baixa, 71,2%, e os mais pobres, 78,6%”.
O que isso tem a ver com o neoliberalismo? E que Le traz como conseqüência o aumento da desigualdade e concentração de riqueza. Thomas Piketty no livro O capital do século XXI (2013) com ampla base empírica, mostra como houve um crescimento contínuo da desigualdade de riqueza desde a década de 1970, mais acentuada do que a desigualdade de renda. Nesse período, o 1% mais rico, as classes dominantes detinha 50% de toda a riqueza, enquanto o 90% mais pobre detinha apenas 5%, ou seja, apenas uma inexpressiva minoria se beneficia do crescimento econômico.
Este nos parece deveria ser um dos focos centrais de candidatos à presidência do país: como enfrentar o grave e contínuo problema das desigualdades, da pobreza e da miséria, com projetos e soluções consistentes e não meramente eleitoreiro e, fundamentalmente, que não pode se dá no marco de políticas neoliberais. Como muitos estudos têm demonstrado, desde o início da era neoliberal, há uma ordem global que espalha fome e miséria, que a pandemia aprofundou. (Em todos os países, os mais pobres sofreram os maiores impactos, perdendo emprego e renda, expôs, alimentou e aumentou as desigualdades, manteve a concentração de riquezas nas mãos de poucos, enquanto as maiorias empobreceram), aprofundou-se a precarização do trabalho e das condições de vida dos mais pobres, o que evidencia o fracasso das políticas neoliberais para combater as desigualdades. Este me parece é um grande desafio: manter essas condições e aprofundá-las, em beneficio de uma minoria, ou romper com elas, o que fica subjacente um processo de transformação estrutural profunda e não apenas conjuntural e muito menos eleitoreiro. Lutar por um mundo mais justo e menos desigual deveria ser a prioridade de um governo popular, investir em serviços públicos, criar empregos, defesa do meio ambiente e assegurar que todos tenham acesso à cultura, a educação e saúde de qualidade.