Um diálogo sobre casamentos e alianças na política brasileira

Há alguns anos conversava com um amigo que ponderava a existência de uma “onda vermelha” na América do Sul durante os anos 2000. Ele dizia não acreditar que um trabalhador, morando na periferia de uma cidade brasileira, votaria em um partido de esquerda aqui porque Hugo Chávez governava a Venezuela ou os Kirchner governavam a Argentina, por exemplo. O pano de fundo deste diálogo era se é verdadeira a premissa de que Lula só venceu em 2002 por conta da aliança com o empresário José de Alencar, à época no PL.

Apresentei meu ponto de vista segundo o qual seria sim possível identificar um fenômeno político comum nos países da Região, que alguns chamaram de “onda vermelha”, porque todos eles passavam por um mesmo processo: o desgaste político de suas classes dominante depois de mais de uma década de neoliberalismo piorando cada vez mais as condições de vida de seus povos. Aquelas forças políticas que se tornaram referência na oposição a este modelo chegaram aos anos 2000 como alternativas reais de governo nestes países.

Se a aparência indica que após três sucessivas derrotas eleitorais, 1989, 1994 e 1998, o PT só conseguiu vencer na quarta tentativa em 2002 quando moderou-se ainda mais e fez uma aliança com um setor do capital produtivo, a essência pode indicar outra coisa.

O lugar que o PT ocupava no espectro político brasileiro em 2002 foi definido em 1989, ao passar para o segundo turno. O grande nome das forças democráticas e populares até então era Leonel Brizola, do PDT. Com uma longa e bela trajetória de luta contra a ditadura, Brizola e o PDT de fato lembravam uma tentativa de retorno àquele governo de João Goulart, interrompido pelo golpe. Porém, com as organizações populares em ascensão desde o início da década, o povo optou pelo futuro ao invés do passado.

Como um partido com menos de 10 anos de existência, de origem popular, com forte viés classista, consegue chegar ao segundo turno das primeiras eleições presidenciais com voto direto após um longo período de ditadura? Ao recusar o pacto pelo alto, não participando do Colégio Eleitoral que elegeu indiretamente Tancredo Neves e José Sarney após a derrota do movimento Diretas Já, o PT passou a representar a esperança de um projeto popular para o país.

A diferença entre Lula e Brizola no primeiro turno foi de apenas 0,67%. Sem aquela ousadia petista em 1989, não teria sido o PT o principal opositor ao neoliberalismo durante toda a década de 1990 e o depositário da esperança popular em 2002, com ou sem alianças. A moderação que se verificou em 2002 tem mais a ver com todo o refluxo enfrentado pela esquerda em todo o mundo desde o fim URSS, com vitória política e ideológica do neoliberalismo.

Do ponto de vista do conteúdo, se antes o teto era a construção de outra forma de organização social e o piso era a melhoria das condições de vida do povo, o fim da Guerra Fria produziu um rebaixamento programático nos setores majoritários da esquerda, transformando em teto aquilo que era piso. No PT, pelo menos desde 1995 este processo de moderação programática já vinha em curso. Além disso, o fenômeno da “onguização” já afetava os movimentos sociais, que perdiam capacidade de pautar a agenda política do país.

Praticamente duas décadas depois, aquele meu amigo repete um argumento bastante parecido, defendendo uma aliança entre Lula e Geraldo Alckmin. Realmente, no interior da esquerda brasileira, não apenas no PT, prevalece a ideia de que um “mau acordo é melhor que uma briga”. No entanto, se a esquerda brasileira está, majoritariamente, em 2002, a direita está inequivocamente em 1989.

O próprio presidente Lula afirma que não tem sentido governar novamente se não for para fazer mais e melhor do que já feito. Todavia, como será possível um novo governo em melhores patamares sem desfazer todo o retrocesso promovido pela direita e extrema-direita desde 2016? Como melhorar as condições de vida do povo sem rever a Emenda Constitucional 95, as contrarreformas trabalhista e previdenciária, a política de privatizações, a política de desinvestimentos, o atrelamento da política de preços da Petrobrás ao dólar, a autonomia do Banco Central etc.? Por isso, antes de ser falar sobre o vice, importa falar sobre o programa.

Sem isso, uma eventual aliança eleitoral com os setores sociais que se referenciam em Geraldo Alckmin, independente do partido em que o ex-tucano venha a se filiar, terá efeito análogo ao que foi a “carta aos brasileiros”, bem apelidada de “carta aos banqueiros”, em 2002. Como Jair Bolsonaro não tem se mostrado viável para enfrentar o presidente Lula e como a mal chamada “terceira via” também não tem conseguido cumprir este papel, tentar neutralizar a capacidade de mudanças de um eventual terceiro governo Lula seria um caminho mais seguro para a classe dominante que, tal qual em 2002, vê seus interesses econômicos sem capacidade de arregimentar apoio político no conjunto da sociedade.

Desta feita, meu amigo pareceu anuir a alguns de meus argumentos. Mas, insistiu na tese da aliança com Alckmin afirmando a necessidade de uma ampla aliança seria necessária para evitar um novo golpe parlamentar. Neste caso será preciso lembrar que em seu primeiro mandato a presidenta Dilma teve uma base de apoio ainda maior que a do presidente Lula e que, em seu segundo mandato, ela tinha, formalmente, o apoio de 40 senadores e 304 deputados federais, número mais do que o suficiente para evitar o golpe. Porém, o resultado nós já conhecemos.

Um primeiro turno com uma coligação ideologicamente mais coesa tornará mais viável uma disputa mais politizada e a eleição de uma bancada parlamentar de esquerda mais numerosa no Congresso. Qualquer negociação e ampliação para setores de centro em um segundo turno ou mesmo composição de governo, se dará em termos muito mais favoráveis ao programa escolhido pelas urnas.

Pesquisa Datafolha divulgada no último dia 20 de dezembro, aponta que 43% dos evangélicos acham que Lula foi o melhor presidente que o país já teve, contra apenas 19% que acham o mesmo sobre Bolsonaro. Ou seja, não podemos esquecer que evangélico também é trabalhador.

A esquerda não pode cometer o erro de fazer do sistema político brasileiro, responsável por toda crise que vivemos, um sepulcro caiado que, como diz a Bíblia, pode ser belo por fora, mas cheio de podridão por dentro. A esquerda precisa voltar a ser a força política do futuro e não recauchutar a Sexta República criada pelo pacto de 1988, quando nem mesmo a classe dominante brasileira a isto se propõe. É importante retirar da extrema-direita o discurso de antissistema e desmascará-la como capataz da classe dominante, como de fato é.

O casamento deve ser com a classe trabalhadora. A aliança com outros setores sociais a partir de um programa, que deve apontar para mudanças econômicas que promovam justiça social. Sem isso, corre-se o risco de mudar para ficar tudo igual.