Opinião

Armas, sim. Saúde, não. Prioridades invertidas e voo em queda livre

A partir de primeiro de janeiro, quem quiser importar armas no Brasil vai pagar zero de imposto. O próprio Jair Bolsonaro anunciou a medida em suas redes sociais. O presidente mostrou que promessa é dívida. Essa foi a cereja do bolo de afagos para seus militantes. Antes, a flexibilização do porte e da posse de armas.

Parece incoerência, mas não é. Essa era uma de suas bandeiras de campanha. Mas não deixa de ser curioso: como abrir mão de receita em tempos de crise? O Brasil fechou outubro com taxa de desemprego em 14,1% e 14,8 milhões de pessoas sem trabalho (IBGE).  A retração do PIB para este ano gira na casa dos 6%. Tamanho recuo só foi visto da década de 80, e as projeções para 2021 são desalentadoras para a nossa economia. O Banco Mundial estima uma queda de 5,4% de nossas riquezas em 2021. A ONU diz que passaremos pela pior crise humanitária do mundo pós-pandemia, com mais fome e miséria. Nenhuma matemática explica. A Política miúda, sim, e esta não enxerga muito longe.

Na saúde, o governo federal suspendeu todos os exames de genotipagem capazes de definir tratamento de pessoas com HIV e hepatite C no país. Como justificativa, o fim do contrato com a empresa responsável pela realização dos exames no SUS. O contrato venceu em novembro e não foi renovado. Em tempo: só esses exames podem determinar a combinação de medicamentos ideal para cada paciente, e isso não traz só mais qualidade de vida para os portadores desses vírus, traz também economia para os cofres públicos porque reduz a necessidade de internações por complicações decorrentes da falta de tratamento adequado. No caso do HIV, em especial, pode impedir que pacientes desenvolvam a AIDS.

Em nota, o Ministério da Saúde (MS) diz que apenas crianças com menos de 12 anos e gestantes com HIV/Aids vão ser submetidas aos exames. A descontinuidade do tratamento deve afetar pelo menos 900 mil pessoas levando em conta dados do próprio MS. Não há qualquer orientação sobre pacientes com hepatite C.  Não custa lembrar que um governo é eleito para cuidar de sua gente e que o acesso à saúde é dever do Estado garantido pela Constituição Federal. O direito à vida é também um direito humano que está sendo claramente negligenciado. Se isso não é retrocesso, é o quê?

Os dois exemplos mencionados aqui mostram as prioridades do governo Bolsonaro e sua política miúda, ideologizada e excludente, regida por interesses domésticos. Que esperar de um chefe de nação que se comporta como o deputado do baixo clero que sempre foi? E 2021 nos reserva uma nova onda de preocupações em seus dias primeiros. Com o recrudescimento da pandemia da Covid-19, que chegou a um Brasil já instável economicamente e às voltas com a retirada de direitos, o fim do pagamento do auxílio emergencial só piora as coisas.

Voltemos às contas. Com a redução do auxílio de R$600,00 para R$ 300,00, mais de 8,6 milhões de pessoas passaram a viver em situação de pobreza, e mais de 4 milhões ficaram em situação de miséria. É o que aponta levantamento do pesquisador Daniel Duque, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Sem o auxílio emergencial, diz ele, mais de 21 milhões de pessoas terão de sobreviver com apenas R$ 1,05 por dia. Isso é política de extermínio. Vão dizer: ah, foi a pandemia! Não, foi a inércia diante dela. A crise sanitária chegou ao Brasil depois de devastar Europa e Estados Unidos. Não só não nos preparamos para enfrentá-la, como vimos um país sem rumo – apesar do capitão – , com trocas sucessivas de ministros, vácuo de mais de 100 dias sem ministro e, depois, a nomeação de um militar para a pasta. No currículo de Eduardo Pazuello, expertise em logística. Até agora, 7 meses depois de assumir a função, primeiro como interino e em setembro como titular, o general não disse a que veio. Basta lembrar dos quase 7 milhões de testes para covid-19 contingenciados e que só não perderam a validade porque a Anvisa estendeu o prazo.

Estamos em queda livre. Estarrecedor olhar para tudo isso e para as prioridades de um presidente que continua politizando as vacinas contra a covid-19, retardando ações que são fundamentais na recuperação da economia. Bolsonaro preferiu investir no auxílio emergencial a colocar recursos na saúde para não beneficiar prefeitos e governadores durante a campanha eleitoral. Tirou proveito político disso a custo de milhares de vidas. Ah, se torcida ajudasse! Mas torcida nenhuma dá conta de tanto amadorismo e falta de planejamento. Mal presságio para o ano que se avizinha é o que temos.