Especialistas: nota do governo sobre vacina da Pfizer reforça crime de responsabilidade
Em nota divulgada na última semana, o governo federal afirmou que a proposta apresentada pela Pfizer para fornecer vacinas ao Brasil seria “mais uma conquista de marketing, branding e growth” para a empresa e que “causaria frustração em todos os brasileiros, pois teríamos, com poucas doses, que escolher, num país continental com mais de 212 milhões de habitantes, quem seriam os eleitos a receberem a vacina”.
O reconhecimento de que o governo recusou a oferta da farmacêutica causou não só frustração, mas também reforçou o entendimento de especialistas de que a administração federal comete, efetivamente, crime de responsabilidade no trato da pandemia por atentar contra um dos princípios basilares da Constituição: o direito à vida.
Oposicionistas apontaram que a nota do governo é uma “confissão de culpa”. Constitucionalistas, por outro lado, ao avaliar a situação, observam que o texto isoladamente talvez não seja suficiente para caracterizar um crime de responsabilidade, mas traz mais um elemento para reforçar a postura de descaso diante da saúde e da vida de milhões de brasileiros. A configuração de um crime de responsabilidade por uma autoridade pública eleita por milhões de brasileiros não pode, dizem, ser banalizado. Deve se dar apenas diante da maior gravidade. É, para eles, o caso.
A nota, publicada no site do Ministério da Saúde no último sábado (23/1), fala, também, em nome do governo federal. A Pfizer chegou a oferecer 70 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19, o que foi feito inclusive por meio de carta do CEO da empresa ao presidente da República, Jair Bolsonaro. De início, não houve resposta, depois, não houve avanço. No sábado, o governo confirmou que as tratativas não foram de interesse porque o acordo “causaria frustração em todos os brasileiros”.
O governo critica o fato de que a Pfizer se propôs a fornecer 2 milhões de vacinas nos três primeiros lotes, mas não diz que este é o mesmo número entregue pela Oxford em parceria com a Fiocruz até agora. O texto também não informa que o total ofertado pela empresa americana chegava a 70 milhões de doses.
Crime político
Se a nota viesse isolada, no começo da pandemia, poderia ser lida como, por exemplo, uma estratégia para o governo negociar com a Pfizer os termos do contrato. Mas, sendo divulgada depois de meses de estado de calamidade pública, ela aponta para outro cenário. Assim entende o advogado, médico sanitarista e pesquisador da USP Daniel Dourado, que reforça, também, que crime de responsabilidade é um crime político, não um tipo penal.
Além disso, mesmo que a nota seja assinada por Pazuello, é possível implicar Bolsonaro também. Trata-se de uma obrigação do Estado fazer todos os esforços para compras vacinas neste momento e, portanto, ter oportunidade de comprar e não comprar por razões laterais é inconcebível.
Mesmo porque, lembra, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, afirmou em outubro passado, ao lado do presidente Jair Bolsonaro que “é simples assim: um manda e o outro obedece”. A frase foi dita depois que o presidente havia desautorizado o ministro ao mandar cancelar o protocolo de intenções de compra de 46 milhões de doses da vacina CoronaVac, anunciado no dia anterior por Pazuello em uma reunião com governadores.
“Ali, eles estão assumindo que deixaram de se interessar pelas vacinas por razões acessórias, de natureza secundária. É diferente de o governo ter recusado a oferta se o Brasil tivesse garantido 300 milhões de vacinas. Desta forma, no momento em que a nota foi divulgada, ela se soma a uma série de ações e omissões do Ministério da Saúde e da Presidência que agravaram a situação brasileira na pandemia”, afirma.
Um ponto a ser destacado, segundo Dourado, é a importância da comunicação quando o assunto é saúde coletiva. “Não tinha vacina, nem tratamento para a Covid-19. As medidas de controle são medidas comportamentais. Nesse cenário, comunicação é um elemento essencial da medicina coletiva. E Bolsonaro boicotou desde o início, abusando do poder político dele — e o grande ponto do impeachment é um abuso de poder político — para divulgar conscientemente discurso contrário às medidas de saúde pública, ostensivamente”, enfatiza.
Bomba atômica
Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, se considera um conservador quando o tema é crime de responsabilidade. Segundo ele, não houve crime no caso de Fernando Collor. Quando o impeachment de Fernando Henrique Cardoso foi pedido, ele fez um parecer contrário. E Dilma Rousseff, defende, foi afastada sem crime.
“Não se interpreta a Constituição pela lei. A Lei de 1951 traz uma série de condutas não tão graves como a Constituição Federal, condutas ilegais e inconstitucionais. A Carta de 1988 usa a expressão ‘atentado à Constituição’. Ou seja, tem que ser gravíssimo, não uma mera ilegalidade. Ou seja, numa situação de absoluta gravidade. Não é pedalada fiscal, suspeita que comprou uma Elba que pode embasar. O Brasil banalizou o conceito”, diz.
Serrano critica a visão de advogados e políticos que tratam o impeachment como um remédio corriqueiro. “É como na medicina tratar a pessoa amputando um membro dela. Nunca mais o corpo vai ser igual. Deve-se evitar o máximo”, diz. Depois das ressalvas, ele acredita que o botão da “arma nuclear”, nas palavras de Dworkin, deve ser apertado. Afinal, Bolsonaro apertou primeiro ao não agir para evitar as mais de 217 mil mortes por Covid-19 no país. Vai custar caro, mas não há alternativa.
“Para mim, só houve um caso na história brasileira desde a promulgação da Constituição Federal que justificasse o impeachment e é exatamente o comportamento de Bolsonaro na pandemia. Ele atentou contra os dois mais relevantes e essenciais princípios de qualquer constitucional, de qualquer Estado, e da própria sociabilidade. O presidente atentou contra a vida e a saúde das pessoas.”
Nesse sentido, o primeiro passo é, para ele, documentar o que tem sido feito. “Você só teve Nuremberg porque os campos de concentração foram documentados. Precisamos produzir documentos para mostrar ao mundo. É uma grave lesão aos direitos humanos no Brasil. Uma CPI pode fazer isso e pode construir o caminho do impeachment, como foi com Collor”, exemplifica.
Conjunto da obra
Diego Werneck, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), entende que a nota é “o contrário de uma confissão”, já que o objetivo do texto seria enganar os cidadãos. “Isto é grave ainda assim. Todas as apostas do governo na pandemia vão numa direção que deixam desprotegidos os direitos das pessoas. Todo o histórico da pasta e do governo não mostra isso que a nota indica, que é uma tentativa de, a qualquer custo, conseguir as vacinas. Impressiona por ser uma farsa, narrativa enganosa da postura do governo”, diz.
Da mesma forma entende o pesquisador Adilson Moreira, professor de Direito Constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É na soma das medidas tomadas e ignoradas pelo governo que se configura o crime de responsabilidade. Ele destaca que a Lei dos Crimes de Responsabilidade lista os critérios para tal e um dos itens é exatamente atentar contra direitos individuais e sociais. Assim, o governo Bolsonaro comete crime de responsabilidade toda vez que diz que vacinas não são eficazes, exorta as pessoas a não usarem máscaras e a fazerem aglomerações, não negocia compra de insumos e vacinas.
“Nós temos no texto constitucional uma lista significativa de direitos fundamentais. Um deles é o mais básico de todos, que é o direito à vida, e que engloba a possibilidade de proteção da vida, mas também de continuidade da vida”, afirma o constitucionalista. “E essa possibilidade de continuidade, de ter uma vida digna, significa segurança psíquica, social e acesso à saúde. É por meio do acesso à saúde que você tem a possibilidade de integridade física sem o qual o direito à vida não pode ser adequadamente exercido.”
Parte deste texto foi retirado da matéria de ANA POMPEU – Repórter em Brasília. Cobre Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Passou pelas redações do ConJur, Correio Braziliense e SBT. Colaborou ainda com Estadão e Congresso em Foco.