Sem cidadania efetiva e sem dignidade: milhões de famintos na fila do Bolsa Família
Quando se fala em cidadania, é comum pensarmos nos direitos políticos e civis: um RG, um CPF, o direito de votar e ser votado. Mas é preciso ampliar o espectro de compreensão para abraçar a dimensão da cidadania social. Isso passa por decisões políticas ancoradas na participação efetiva dos diversos atores sociais e na ampliação do poder econômico das famílias por meio de trabalho digno que gere o mínimo de bem-estar. Ao contrário, o que assistimos é o aumento do desemprego, o excesso de informalidade que reduz drasticamente a proteção social – produtos de um processo de flexibilização que considerou mais o interesse do capital que as necessidades da ampla maioria dos cidadãos. Resultado: pobreza aguda e fome. Em 2021, 9% da população vive em insegurança alimentar grave (Rede PENSSAN). São 19 milhões de pessoas que não têm o que comer.
A pandemia da covid-19 ampliou as distorções em um país de miseráveis e se beneficiou da política adotada pelo governo federal que apostou na contaminação de rebanho e na seleção natural do vírus. Sob esse entendimento, os fortes sobreviveriam. Pra quê vacina? É a morte como política. Somou-se a isso, o corte criminoso das políticas de assistência social e de amparo àqueles em situação de maior vulnerabilidade, sobretudo no Nordeste onde 48.116 mil famílias foram cortadas do Bolsa Família de dezembro de 2020 a fevereiro deste ano. O alerta foi feito pelo Comitê Técnico da Assistência Social do Consórcio Nordeste que voltou a denunciar: um número superior a 2 milhões de famílias agonizavam na fila do Bolsa Família até junho, de norte a sul do Brasil, mesmo estando no CadÚnico e apresentando perfil socioeconômico para receber o benefício.
Não se sabe quais os critérios adotados pelo Ministério da Cidadania porque não há transparência dos dados relacionados ao Programa apesar do pedido oficial feito pelo Consórcio Nordeste. O que fica claro até aqui é que o governo promove injustiça social quando adota medida higienista e nega pão a milhares de famintos no meio de uma crise sanitária sem precedentes. Tamanho desamparo é método. Bolsonaro governa para uma minoria: alimenta sua base de sectários ideológicos com discurso armamentista, xenofóbico e contra os direitos humanos; ‘amamenta’ bancos privados com recursos públicos, desmonta as grades de proteção ambiental para favorecer o garimpo e desmatamento ilegal; retira dinheiro da arte, da cultura e castra a educação.
Não há incoerência aí. Em pouco mais de mil dias de governo, Jair Bolsonaro coleciona vasta lista de desmonte de políticas públicas e denuncia seu caráter autoritário. Revogou o decreto 8.243/2014 que estipulava a Política Nacional de Participação Social (PNPS), normatizava, coordenava e nutria as ações do governo federal voltadas para a sociedade civil. Por meio de decreto (9.759/2019) extinguiu conselhos, comitês, comissões e demais núcleos de discussão criados para ampliar a participação democrática por meio de diálogo da sociedade com o Estado. Ou seja, puxou o tapete dos movimentos progressistas e setores sociais e políticos que lutam por uma cidadania efetiva.
Escreveu o sociólogo Celso Rocha de Barros: “Um país não elege Jair Bolsonaro sem azar”. Houve, de fato, uma série de variáveis que nos colocaram neste ponto de retrocessos: corrupção, impeachment sem crime, Lava Jato, ativismo judicial, enfraquecimento dos partidos e das Instituições, somados, todos, à “depressão” econômica, a uma boa dose de maldade de um lado, e desencatamento do outro. Com sorte, o país recobrará o equilíbrio. É o estado de direito em jogo… de direito à vida, à dignidade e à cidadania plena.