A filosofia e as perspectivas para o futuro

Essa é minha ultima coluna do ano. Pensei em varias possibilidades textuais, mas quero deixar aqui registrado meu desejo de esperança por dias melhores. Também não poderia faltar meu agradecimento a você, caro leitor/leitora, por acompanhar, ao longo desse ano difícil, cada texto publicado. Todos escritos com carinho e esmero pensando na construção dessa resistência às intempéries políticas e sociais aos quais somos submetidos. Espero que 2022 possamos estar juntos e juntas novamente em novas produções, novos sonhos e novas realizações. E para me despedir de 2021 trago até você um pouco um pouco sobre o que foi escrito na coluna ao longo do ano sobre a filosofia, seus conceitos e como eles podem nos dar perspectivas futuras.

O estatuto da filosofia ocidental separa razão e emoção, res-cogitans e res-extensa. A grosso modo, separa o espírito – substância pensante, imperfeita e finita, da matéria –  substância que não pensa, extensa, imperfeita e também  finita. Essa aparente divisão proposta pelo filósofo Descartes encontrou, no ocidente moderno, o amparo para seguir de forma dicotômica, segmentando e dividindo categorias que, em alguns casos, poderiam ter tido perspectivas bem diferentes.

Uma dessas perspectivas é o próprio ser humano, de onde se origina a teoria cartesiana. Tão complexo em suas estruturas quanto o planeta no qual vive, a terra, formada em sua complexa physis, é uma teia complexa de enervações, artérias e veias por onde correm a seiva da vida. O homem é tão complexo, fisiologicamente, quanto a terra. Essa cadeia de elementos respiram diferentes sensações e sentimentos no planeta e no homem em harmonia e sintonia simbiótica. No fundo, somos todos iguais. Em nossas igualdades percebemos as nossas diferenças. Essa é a beleza da existência!

Nessa grande colcha de retalhos repousa a vida e os conceitos que nos qualificam  humanamente onde o imperativo categórico kantiano (conceito da filosofia que afirma que é dever de toda pessoa agir conforme princípios dos quais considera que seriam benéficos caso fossem seguidos por todos os seres humanos, sendo necessário tomar decisões sem agredir ou afetar outras pessoas) deveria reger a ética para o bem comum. Indo mais profundamente nas relações, diria que o Ubuntu africano deveria nortear nossas existências. Mas as diferenças residentes na complexidade das existências não nos permite viver a perfeita e pretensa harmonia. O homem, assim como a terra, tem seus desertos e seus mananciais. Tem sua luz e sua escuridão. O homem, assim como a terra, tem seus dias de paz e dias de fúria. Neles residem a dialética da existência e seu diálogo é uma dança embalada pelos mais complexos e recônditos sons e silêncios dos sentimentos humanos.

Nesse sentido é importante perceber-se no mundo. Perceber o mundo é parte de um enredo necessário para a compreensão da biocentricidade da qual somos parte. Vivemos entre humanos, não-humanos e todos os elementos de Gaya (na mitologia Grega o universo surge onde tudo era caos, e do caos nasce Gaya, energia feminina e fértil que chamamos de Terra), inclusive os não humanos (por não humanos entende-se a vida manifesta em suas mais diversas formas, como animal, vegetal ou mineral) têm seu próprio imperativo categórico. É nesse interstício que deveria o Ubuntu ser o norte da humanidade para que a harmonia prevalecesse. Nisso a filosofia africana tem muito a nos ensinar, e essa filosofia, embora tenha sofrido tantos apagamentos, tantas tentativas de epistemicídio, sobrevive nas nossas raízes, na afroperspectividade que nos povoa, sobrevive nos terreiros de umbanda e jurema, nos candomblés, nas relações de respeito com a terra em sua complexa physis. Nós somos através dela, isso é Ubuntu!

Aquele que anda em desacordo com a natureza, que não traz em si o imperativo categórico e o Ubuntu na dialética das relações entre os seres vivos, entre o homem e a terra, perdeu sua humanidade. Pensa viver sozinho, mas não vive. A terra pode viver sem os seres humanos, mas nós somos completamente dependentes dela.

Que o ano vindouro nos traga a perspectiva plural da existência e seguindo o imperativo categórico de Kant, no qual o cumprimento do dever deve ser movido apenas pela decisão correta a ser tomada imparcial e desinteressadamente respeitando o valor e a humanidade de cada criatura, agindo segundo máximas que todas as pessoas possam acolher e praticar. Que o Ubuntu, princípio máximo de humanidade e respeito ao outro dentro da lógica filosófica africana, possa ser nosso imperativo categórico e que a partir dele possamos olhar para o passado (sankofa), e com os pés no chão, construirmos nosso futuro de liberdade, solidariedade, inclusão, empatia e equidade, pois como afirma o conceito também africano de Ukama, somos todos filhos da mesma mãe e bebemos do mesmo leite. É essa perspectiva que quebra o paradigma dicotômico ocidental. Não somos apenas res-cogitans e res-extensa, somos mais que isso, somos uma totalidade onde reside uma teia complexa de enervações, artérias e veias por onde correm a seiva da vida. Somos pensamentos, sentimentos, emoções. Somos humanos que precisam resgatar a humanidade, e nesse caminho, é preciso olhar para trás para calçar nossos pés de esperança, a esperança de que se implemente políticas sociais, que se rompam as barreiras dos preconceitos étnicos, religiosos, de gênero… esperança de um lugar onde a dialética da existência seja permeada de compreensão, paz e oportunidades para todas as pessoas.