Brasil: um quarto de despejo
Carolina Maria de Jesus. Mulher, negra, pobre, favelada e uma das maiores escritoras brasileiras. Apaixonada por livros, ela estudou até o segundo ano primário. De dia, Carolina catava lixo para alimentar seus filhos e sobreviver. À noite, escrevia para poder sonhar.
Dotada de uma profunda sensibilidade social e artística, Carolina de Jesus nos legou um clássico da literatura, o livro Quarto de Despejo. Publicado em 1960, seu relato continua extremamente atual. Leitura obrigatória para quem quer compreender o que está acontecendo no país.
Sobre a fome que assola os pobres, os de ontem e os de hoje, escreveu Carolina: “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago.”
O Brasil é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo. Vende soja, frango e carne bovina para dezenas de outros países. Tudo em dólar. Faz a riqueza de centenas de produtores rurais. Mas uma grande parte do seu povo brasileiro continua passando fome, seis décadas após o relato de Carolina.
De acordo com o estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), publicado pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 13 de outubro, mais de 24 milhões de brasileiros acordam sem saber se irão comer naquele dia. Desde 2014 a situação tem piorado.
Outro grave problema, também detectado por Carolina de Jesus, é o da moradia. No mencionado livro, há a seguinte passagem: “Em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.”
O Brasil de 2021 não é muito diferente do país revelado por Carolina de Jesus. A crise econômica e o alto índice de desemprego fizeram com que o número de favelas explodisse. De acordo com o levantamento do IBGE, a quantidade de favelas no país dobrou na última década. Em 2010, o número de “aglomerados subnormais” era de 6.329 em 323 cidades. Já em 2019, são 13.151 em 734 municípios.
Essas mazelas sociais, denunciadas por Carolina de Jesus e agravadas nos últimos anos, têm responsáveis. A elite econômica brasileira, que paga salário mínimo para seus empregados e investe na bolsa de valores de New York, lucra com essa situação. Só há riqueza de poucos porque há pobreza de muitos.
A lógica da sociedade capitalista é concentrar riqueza, cada vez mais e mais. Não é por acaso que o Brasil registra uma das maiores concentrações de renda do mundo. De acordo com o levantamento do banco Credit Suisse, 1% da população detém 49,6% da riqueza nacional. A fome, a miséria e a violência são as consequências inevitáveis do modelo político e econômico que temos.
O livro Quarto de Despejo já teve centenas de edições, sendo traduzido para 13 línguas. Seu texto é de uma beleza lúcida, clara e objetiva, como um raio de sol. Ele nos desperta para a dura realidade do Brasil e nos faz pensar que o mundo deveria ser bem melhor do que ele é.